Michel Houellebecq não é um autor unânime. Uma simples pesquisa pelo seu nome retorna um rol infinito de adjectivos: iconoclasta, provocador, génio, misógino, islamofóbico, reaccionário, idiota. Aparece frequentemente ligado a polémicas: ainda em Janeiro deste ano declarou, numa entrevista, que o povo “nativo” francês poderia em breve pegar em armas e cometer “actos de resistência” contra muçulmanos nos seus bairros, numa espécie de bataclan invertido — o que deixou a França de cabelos em pé.
Por outro lado, desde que irrompeu na cena literária francesa, há quase 30 anos, com o seu primeiro romance, “Extensão do Domínio da Luta”, o antigo funcionário público detém, como escritor, um estatuto ímpar — ganhou o prestigiado prémio Goncourt com “O Mapa e o Território”, de 2010, e os seus romances são admirados mundialmente. A cancel culture, tão em voga nos Estados Unidos, parece ainda não ter chegado a este autor.
O último livro do autor dá pelo nome de “Aniquilação” (Alfaguara, 2022), romance centrado em Paul Raison, um burocrata de alto nível no governo francês, assessor e melhor amigo do ministro da economia, Bruno Juge. O romance começa com um embuste macabro: um grupo terrorista faz circular pela internet um vídeo ameaçador, criado com recurso a técnicas avançadas de deep fake, que mostra o ministro a ser guilhotinado, com um realismo impressionante. O nível técnico é tão apurado que deixa os serviços de inteligência franceses à nora para descobrir a sua origem.
O enredo sofre então uma guinada, deixando o registo de thriller para enveredar por um drama familiar: a relação com a esposa tornou-se gélida. Cada vez mais distante, Prudence deixa de cozinhar para ele (rude golpe para o macho francês, que em vez de desfrutar de comida gourmet passa a viver de congelados para micro-ondas), assume-se como vegana e converte-se ao wiccanismo, uma espécie de religião pagã, dada ao yoga e às influências dos equinócios.
O pai de Paul, Edouard Raison, um antigo agente secreto, sofre um AVC, o que acabará por ser o rastilho para a lenta dissolução da família. Internado numa unidade de cuidados paliativos, é acompanhado pela segunda esposa e pela irmã de Paul, Cécile, católica devota e votante da Rassemblement National de Marine Le Pen. O quadro familiar completa-se com Hervé, marido de Cécile, um notário desempregado que em tempos fez parte de uma organização clandestina de extrema direita, e Aurélien, o débil irmão mais novo, casado com uma verdadeira megera, a jornalista Indy.
Paul não desperta grande simpatia ao leitor. Parece adormecido, entregue à inércia, desprovido de grandes virtudes ou defeitos de maior. No início, surge como um macho despeitado pelas ações da mulher. Ao longo do livro, navega pela situação do pai e pelos problemas da irmã e do irmão com relativa indiferença (excepção feita a alguns arroubos de emoção a que se permite, muito de vez em quando), e dedica ao ministro uma lealdade às vezes demasiado servil.
A aniquilação do título pode ler-se a vários níveis: para já, a decadência do mundo ocidental é um tema comum nos livros de Houellebecq, que aqui alastra essa aniquilação para o próprio protagonista. No último quarto do livro, Paul enfrenta a mais terrível força do universo: a entropia. Tudo caminha para o vazio e cada um de nós não é excepção.
“Aniquilação” é um livro sombrio, críptico e onírico. Porém, o autor não deixa de exercer a sua ironia e índole provocatória em certas passagens mais críticas da sociedade francesa — nomeadamente quando se refere aos movimentos políticos: o livro decorre durante a campanha presidencial de 2027, mas a paisagem política reflecte (e comenta) muitos dos protagonistas da actual política francesa, e Macron não é poupado.
Há também uma dimensão sociológica neste romance — aspectos da sociedade ocidental neoliberal são postos a olho nu. Desde a vontade de esconder os velhos e enfermos da vista, manifestação de uma certa indiferença e incómodo, até à obsessão generalizada pelos ecrãs — ironicamente, a geração mais conectada de sempre é igualmente a mais corroída pela solidão.
Enquanto Paul se encaminha para o seu desfecho, acontece nada menos que um milagre. É a sua relação com Prudence que o resgata — a ternura e o sexo acompanham-no e dão-lhe consolo nas piores horas. Prudence é então retratada como um anjo sexual, presente para amortecer a inevitável decadência e morte do protagonista. Talvez seja esse amor incondicional a tese central do livro e o seu único raio de luz.
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