“O que é um herói e como se constrói?
As ações dos heróis podem ser separadas da moral?”
É com estas interrogações que Carlos Vale Ferraz inicia a apresentação de “Angoche: Os Fantasmas do Império” (Porto Editora, 2021), um romance baseado em acontecimentos verídicos e pouco conhecidos da história recente de Portugal.
Na noite de 23 de abril de 1971, um navio da Marinha mercante portuguesa – o cargueiro Angoche –, esfuma-se na costa de Moçambique. É encontrado três dias depois, no alto-mar do oceano Índico, em chamas, sem sinal dos 22 tripulantes nem do passageiro. As explicações oficiais fornecidas às famílias destes e à imprensa não coincidem com alguns factos conhecidos e um oficial da Marinha, o Capitão-Tenente Dionísio, conhecedor dos meandros dos serviços secretos internacionais e dos interesses envolvidos nas questões coloniais, transforma a investigação do caso na missão da sua vida, após ser confrontado com os rostos das mulheres dos desaparecidos.
Para adensar a trama, na noite do desaparecimento do Angoche, a amante de um outro oficial da Marinha, uma portuguesa que trabalhava num cabaré em Moçambique, é alvo daquilo que parece ser um homicídio disfarçado de suicídio. Tal como o navio, sofre uma morte sem autor nem motivo conhecido, “deixando apenas hipóteses para serem confirmadas e mistérios para serem descobertos”.
O autor esclarece logo nas primeiras páginas que, embora recorra a personagens e acontecimentos reais, esta obra, dedicada in memoriam dos tripulantes desaparecidos do navio e de quem morreu por saber demasiado sobre o caso, não é um romance histórico, mas sim uma ficção criada sobre um certo tempo da nossa História. Porém, sendo Carlos Vale Ferraz um militar do exército que cumpriu comissões em África- e que se tornou investigador da História Contemporânea de Portugal -, demonstra possuir os conhecimentos e o talento mais que suficientes para desenvolver hipóteses tão plausíveis que se torna difícil distinguir os limites entre realidade e imaginação. O resultado é uma intriga de espionagem fascinante, que poderia servir de argumento a um filme ou a uma série televisiva.
O narrador é o sobrinho de Dionísio, que aprecia aprender com ele uma História diferente da que consta nas enciclopédias. Envelhecido, o oficial partilha avidamente, como numa confissão, as memórias do caso que sente ter-lhe manchado o uniforme e a dignidade. Através das conversas entre ambos, entrevemos as lutas decorrentes do colonialismo europeu em África, a comédia de enganos da diplomacia, as mentes terríveis dos homens dispostos a tudo para passarem por heróis e os crimes absurdos da guerra suja a que a grande política por vezes recorre, “entre belas proclamações”.
Apesar da mágoa do desencanto e dos riscos que assume na sua demanda, mesmo sabendo que “verdade é a palavra encantatória para justificar todas as causas”, este herói sábio e leal, que parece simultaneamente próximo e distante de nós, escolhe conscientemente transformá-la no seu farol, pois “sem verdade apenas vemos mascarados”.
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