Vitorino Nemésio (1901-1978) é um dos grandes vultos da literatura portuguesa do século XX, encontrando-se em curso a publicação de todos os seus escritos, actualizados em conformidade com a ortografia em vigor, no âmbito da colecção Obra Completa de Vitorino Nemésio. O volume que agora se apresenta é o primeiro da série Teatro e Ficção, reunindo os títulos “Amor de Nunca Mais”, “Paço do Milhafre” e “O Mistério do Paço do Milhafre” (Companhia das Ilhas e Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2018).
“Amor de Nunca Mais”, sendo a única peça de teatro legada pelo autor, faz este tomo destacar-se do resto da colecção. Trata-se de um drama em apenas um acto, com um enredo relativamente simples, sobre dois jovens, Jorge e Clarisse, que se apaixonam, apesar de cada um estar comprometido com outra pessoa. Jorge, que tem espírito de poeta, deseja lutar pelo amor verdadeiro, mas pressente que lhe faltará a coragem para enfrentar as convenções sociais.
Nemésio tinha apenas 19 anos quando publicou a peça, em 1920. No prólogo, caracteriza-a, humildemente, como “um mero ensaio”. Todavia, Chloé Pereira e Luiz Fagundes Duarte, os especialistas que apresentam o texto, defendem que se encontra aqui “uma segurança no manuseio da linguagem e da técnica dramatúrgica, bem na construção das personagens e na sugestão dos ambientes, já considerável para um rapaz de 19 anos”.
“Paço do Milhafre” e “O Mistério do Paço do Milhafre” são duas colectâneas de contos, publicadas pela primeira vez com 25 anos de diferença, em 1924 e 1949, respectivamente. A primeira destacou-se, no seu tempo, pela representação da realidade açoriana, que o autor, natural da Ilha Terceira, conhecia bem. Nela encontramos, por exemplo, descrições da vida dos assalariados agrícolas (“Alma de Deus”), do perigo que os pescadores corriam (“Terra do Bravo”), do temor das gentes perante os terramotos (“Misericórdia!”), dos tempos tumultuosos da revolução liberal (“Os Malhados”), da mágoa das separações causadas pela emigração (“Célia”), da reconstituição popular de narrativas religiosas (“Os Reis Magos”) e de dramas sociais, como o da mãe que teme pelo filho (“Mau Agoiro”) ou o da rapariga que engravida do namorado, que lhe promete casamento, mas depois a abandona a favor de uma união mais favorável (“Enganada”). Destaca-se ainda a narração fantasiada da descoberta e colonização de uma terra à qual facilmente associamos os Açores (“Brumolândia”), bem como os pensamentos de um repórter que passeia por Lisboa de madrugada, comparando a realidade deprimente com a metrópole sonhada da sua juventude (“Antemanhã”).
Alguns dos contos da primeira colectânea são reescritos na segunda, nomeadamente “Os Reis Magos”, “Os Malhados” e “Mau Agoiro”, tendo este último recebido um desfecho totalmente diferente. Por seu lado, “Terra do Bravo” divide-se em dois contos: “Mar Bravo”, bastante próximo do original, e “Quatro Prisões Debaixo de Armas”, onde é aprofundada a história de uma das personagens. Há também contos novos que, além de mostrarem a evolução da escrita do autor neste género literário, retratam a sociedade açoriana da primeira metade do século XX. Todavia, graças à humanidade das personagens, o autor consegue transcender o regionalismo e dotar o seu trabalho de um carácter universal, tornando imperiosa a sua (re)descoberta.
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