“A nossa divisa estava bordada a vermelho e ouro, AMEMO-NOS UNS AOS OUTROS, com o verbo «amar» a envolver num semicírculo «uns» e «aos outros». E essas palavras caíam-me bem. O amor em vez da guerra!”
Com grandes doses de amor e guerra chega-nos o mais recente romance da escritora Catherine Clément, já conhecida dos leitores portugueses. “Amemo-nos uns aos outros” (Porto Editora, 2016) transporta-nos para a Comuna de Paris, fazendo-nos (re)viver os tempos em que reinava a revolução, fértil em batalhas, motins, guerra e sangue mas, também, a discussão de direitos há muito adiados.
A autora cativa-nos logo no capítulo inicial, com um narrador no mínimo improvável – o Génio da Liberdade, a escultura da praça da Bastilha que ainda hoje podemos ver naquele lugar, “Empoleirado na minha coluna, de pé no ar, sexo ao léu, com as minhas grandes asas abertas, a minha estrela na testa, o archote numa mão e uma cadeia quebrada na outra” – foi assim que presenciou o clamor das multidões que pelo palco das revoluções francesas passaram e, também, todas as batalhas, vitórias e derrotas que aqui se vão narrar.
Seguimos pela mão de Abel Gornick, maçon nascido na Ucrânia e artesão joelheiro num bonito bairro de Paris, juntamente com o seu sócio, Léo Frankel. É principalmente através de Léo, húngaro (mas tal como Abel, “parisiense até à medula”), membro da Primeira Internacional, que vamos vibrar com a ânsia revolucionária e, quando nomeado delegado do Trabalho pelo governo eleito, ver brotar do seu gabinete incríveis liberdades – “o sonho de construir um modelo ideal de sociedade sem exploradores nem explorados”.
Através destas duas personagens, Catherine Clément dá-nos uma visão muito completa destes tempos agitados, contrapondo aqueles que, tal como Léo, estão “do lado da insurreição e da violência legítima”; com os que, como Abel, não suportam a violência. A visão adquire os 360 graus quando, a par das investidas militares, questões políticas e princípios e medidas defendidos pela Internacional, a autora nos presenteia com descrições bastante autênticas e visuais do ambiente parisiense da época, mostrando ainda as consequências práticas desses dias sangrentos no povo.
A forte componente histórica do livro acaba por dar as mãos ao romance quando introduzimos na história Élisabeth Dmitrieff, uma jovem russa representante de Karl Marx na Comuna, que se recusa “a amar algo ou alguém que não a revolução”. Lisa, a par de outras personagens, vem trazer um ponto diferenciador e fortíssimo nesta obra: o papel da mulher na revolução.
No que a isto diz respeito, “Amemo-nos uns aos outros” é soberbo. Por um lado temos as descrições das prostitutas que vagueiam pelas ruas, das mulheres que têm como arma seduzir os soldados para “desanuviar a atmosfera”; por outro temos Louise Michel, personagem não fictícia aqui tão bem homenageada, que de enfermeira dos feridos nas barricadas passou a verdadeira combatente, vestindo a farda da guarda nacional que a fazia confundir com o sexo oposto, activista política até à morte. Já Lisa cria a União das Mulheres para a defesa de Paris, e não vacila quando as batalhas travadas nos cafés, nos clubes e em casa de Karl Marx dão lugar às frentes de batalha, mas revela-nos sempre o seu lado mais frágil e humano.
Quando Abel se pergunta o que responderia Lisa às “mulheres que, como alimento, pediam apenas paz”, esta responde-nos com um verdadeiro manifesto de igualdade: “Todas unidas e determinadas, esclarecidas e fortalecidas pelos sofrimentos que as crises sociais sempre acarretam, (…) as mulheres de Paris provarão à França e ao mundo que também elas saberão, no momento do perigo supremo – nas barricadas e nas muralhas de Paris, se a reação forçar as portas –, dar o seu sangue e a sua vida, como os seus irmãos!”.
A linguagem, que se aproxima a uma conversa com o leitor, reúne o melhor de dois mundos: a proximidade que só o discurso na primeira pessoa oferece e o conhecimento de todos os acontecimentos de que só um narrador omnipresente é capaz.
Numa altura em que se defendia “não gastar energia com amores vãos”, não faltam elementos nesta história que contrariem a premissa “não há lugar para o amor durante a Revolução”. Misturando de forma brilhante personagens fictícias e reais, Catherine Clément dá-nos uma verdadeira lição de história prestando, simultaneamente, uma sentida homenagem “a todos cujas vidas foram tocadas pelo Génio da Liberdade”. O Génio que tudo presenciou e que, na praça da Bastilha, relembra a todos os parisienses o duro preço da vitória da liberdade.
“Léo tinha razão em filiar-se na Internacional. Era quase o meu lema – Amemo-nos uns aos outros –, só que esse amor está na ponta das nossas espingardas.”
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