Mais de vinte anos após a morte de Eça de Queiroz (1845-1900), o seu filho José Maria empreendeu a organização e publicação de diversos manuscritos inéditos. Quatro deles ressurgem agora, na obra “Alves & C.ª e Outras Ficções” (Livros do Brasil, 2021).
“Alves & C.ª” é o maior texto da colectânea, tanto em número de páginas como em qualidade. O protagonista, Godofredo Alves, é um empresário cuja existência rotineira é abalada quando decide fazer uma surpresa à esposa no aniversário do casamento, deparando-se com ela nos braços do seu sócio e melhor amigo. Passam-lhe pela cabeça “ideias de sangue e de morte”, mas o receio do escândalo e do ridículo fazem-no hesitar. Explorando a ideia de que “o pior é o falatório”, nem as criadas de Godofredo nem a família da esposa têm pejo em tirar partido do incidente. Entre a simpatia que os dois homens continuam a sentir um pelo outro, o entendimento que o negócio comum lhes exige e os amigos que se esforçam por atenuar a gravidade do sucedido, com receio de serem chamados a desempenhar o papel de padrinhos num duelo, tudo se conjuga para encorajar Godofredo a consolar o orgulho de uma forma que lhe permita retomar a banalidade dos seus dias. Assim, sem advogar o uso da violência em nome de um ideal de honra, o autor satiriza uma pequena burguesia que sacrifica o amor-próprio pelas conveniências.
Dos outros três textos, “Um Dia de Chuva” destaca-se por também parecer um trabalho finalizado, centrado na visita de um jovem citadino à propriedade rural que tenciona comprar e onde se vê retido pelo mau tempo. Embora esteja longe da acutilante crítica social que celebrizou o autor, há aqui uma representação realista da psicologia do protagonista e boas personagens secundárias.
“O Réu Tadeu” prometia ser interessante, com dois irmãos – um condenado à morte pelo homicídio do outro –, uma personagem mefistofélica e afirmações desafiadoras do ponto de vista religioso e filosófico, tais como “a natureza protege melhor as almas do que a religião”, ou “o homem será tanto maior quanto mais céu conquistar, quantos mais deuses expulsar”. Contudo, ressente-se bastante do estado de incompletude em que foi deixado, com aspectos cruciais da história por esclarecer.
Por fim, “Enghelberto” é uma narrativa que talvez possa ser classificada como fantasia medieval. Situada numa Dinamarca fictícia, abrange desde o nascimento até à ascensão ao poder do protagonista que lhe dá título, um nobre tão belo quanto maldoso. Infelizmente, as descrições das suas crueldades sucedem-se, sem que seja claro se o autor pretendia desenvolver a personagem, ou elaborar uma reflexão sobre o poder absoluto.
Embora se suponha que os dois últimos textos citados interessem sobretudo aos estudiosos da obra de Eça de Queiroz, estamos perante uma reedição deveras meritória, abrilhantada por um texto principal que está ao nível das melhores produções do autor.
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