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Álvaro Siza Vieira, José Carlos Vasconcelos, Correntes d`Escritas, Correntes d`Escritas 2020, Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, Deus Me Livro
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Álvaro Siza Vieira abriu o livro, as portas e as janelas na abertura das Correntes d`Escritas

Por Pedro Miguel Silva · Em 20/02/2020

Se quisermos pegar no sempre muito elaborado palavreado futebolístico e aplicá-lo, com tijolos, argamassa e espírito trolha ao sempre surpreendente mundo da arquitectura, poderíamos dizer que o mestre-de-obras Álvaro Siza Vieira abriu o livro e escancarou portas e janelas da sua casa-mundo, transformando a conferência de abertura da edição deste ano das Correntes d’Escritas numa masterclass do tamanho de um arranha-céus, furando os céus da Póvoa de Varzim.

Arquitecto com obra espalhada pelos muitos cantos do mundo – ou monumentos como a Faculdade de Arquitectura ou o Museu de Serralves, ambos na cidade do Porto -, Álvaro Siza falou da cidade como a matéria essencial da arquitectura, realçando o valor que deve ser dado e empregue no território comum.

Álvaro Siza já pouco trabalha em Portugal. A crise actual da arquitectura europeia levou-o à China, Coreia, Tailândia ou ao Japão, onde o trabalho se realiza e se paga, quase sempre por privados e sem concurso, pelo menos até à chegada do Corona, que suspendeu alguns dos trabalhos que estavam em andamento. A título de exemplo temos o China Design Museum, o segundo museu dedicado ao design no país, inaugurado em Abril de 2018 aquando das celebrações do 90.º aniversário da academia, no campus universitário de Xiangshan, em Hangzhou, a capital da província de Zhejiang.

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O humor foi uma constante, como quando falou dos prémios que foi recolhendo ao longo de décadas como sendo parte de um karma: “Os prémios deram-me muito posto mas, de certa forma, foram a pior coisa que me aconteceu. Criaram anticorpos. Mas os prémios não passam de coisas circunstanciais: quem é o júri, qual a tendência que predomina. Não é apenas a qualidade do trabalho que está em causa”. No seu caso, como disse respondendo ao moderador José Carlos Vasconcelos, “foram muitas circunstâncias boas”.

O desenho, parte menos conhecida mas essencial no trabalho de Siza, foi também abordado. “Continuo a desenhar, cada vez pior. Para ter uma explicação agradável culpo a operação ao braço”.

Em grande destaque esteve o 611 West 56th Street, um elegante arranha-céus que está a ser construído na zona de West Side, em Manhattan, Nova Iorque, projecto encomendado a Siza, com 137 metros de altura e 38 andares: “Tenho tido muita sorte. Achei um milagre absoluto terem-me entregue uma torre em Manhattan. Foi uma imobiliária. Quando vi a planta do espaço achei que não iria caber. São 38 pisos mas a proporção é muito boa. É mais fácil fazer um projecto em Nova Iorque do que no Porto. As regras urbanísticas são facultadas com todo o rigor. Se há alguma dúvida liga-se e esclarece-se. Aqui é mais difícil. A carga burocrática é impensável em Portugal. Comecei a trabalhar em 53, 54, nessa altura não havia burocracia nenhuma – nem informática ou impostos. Os regulamentos eram mínimos. Quando começaram a trabalhar nisso em Portugal fizeram-no com um cocktail violento, retirado de países como a Inglaterra, a Alemanha ou a França”. Um cocktail que serviu para o arquitecto brincar, a título de exemplo, com os extintores e as muitas sinaléticas extra que os circundam.

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Para Siza, a visão da Grande Maçã é a de “objectos a nascerem como plantas num campo. É assim Nova Iorque. A convicção do uso e da força de crescimento é o que conta e o que fica no contexto, não necessariamente a relação com o que está à volta”. Disse ter estado sujeito a regras precisas de altura e profundidade, contando ainda assim com uma relativa liberdade no campo de composição. “É bem aceite um recuo da fachada. Aceitam- se diferenças no perfil do edifício. No topo, a área enorme reservada à maquinaria permite uma liberdade na forma da cabeça do edifício. É tudo muito condicionado mas com abertura à diferença”. Uma diferença que, para Siza, é também um reflexo da consciência americana da sua falta de história, que faz com que esses topos dos edifícios dialoguem entre si em línguas e tempos muito distintos, seja recorrendo à inspiração gótica, renascentista ou barroca.

Sobre o facto de ter abraçado projectos em culturas e geografias muito diferentes da portuguesa, referiu a “ideia mítica de um país ou de uma cidade que transportamos connosco”, que permite que seja a própria novidade e a curiosidade a despertarem a procura do conhecimento e da beleza. O mais importante, seja em que geografia for, será sempre o entusiasmo e o prazer: “Arquitectura sem prazer na sua execução é coisa mais insuportável que pode haver. Tem de se inventar o entusiasmo”. Com 86 anos, brincou sobre o que faz o melhor arquitecto: “A melhor qualidade de um arquitecto é ser novo”.

Nuno Krus Abecasis, presidente da Câmara de Lisboa entre os anos de 1979 e 1988, foi também tema de conversa, tendo recebido palavras de muito apreço por Siza, que dele recebeu a encomenda da reabilitação dos edifícios do Chiado: “Ao fim de dois encontros tratava-me por tu, e depois disso por menino. Até chegou a saudar a minha entrada numa reunião onde estava presente um vereador com um “Oh minha pomba!”. A ele se seguiu Jorge Sampaio, e com isso um processo de democratização pouco favorável ao processo arquitectónico: “Com o Sampaio e a democratização o ritmo de trabalho baixou muito. Era preciso ouvir muita gente antes de se poder fazer alguma coisa”.

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Sobre os muitos projectos que vai deixando erguidos, referiu uma relação feita de distanciamento, de recordações boas e más, mas também com  polémica à mistura, parte essencial do ofício que lhe assiste. Polémica que tanto atravessou o IBA, plano nascido no final dos anos 1970 cuja intenção era reparar uma parte da cidade de Berlim que tinha sido muito danificada durante a guerra, criando uma arquitectura humana e inserindo elementos artísticos na paisagem da cidade – e cujas opiniões se dividiam entre arrasar para construir de novo ou, em alternativa, pegar nas ruínas e recuperar a dimensão histórica, com a participação dos moradores, esta última defendida por Siza; no combate entre a nova arquitectura e o tradicionalismo, no qual Siza acabou sendo considerado um tradicionalista por ter usado o clássico tijolo ao invés da superfície branca; em Salzurgo, onde na ampliação de um casino e à boleia da luta política se viu caricaturado a dar um empurrãozinho ao presidente de câmara; ou em Alhambra, onde um grupo defendeu que o seu projecto não era mais do que um centro comercial, tendo assim caído por terra -“Qualquer dia alguém fará esse projecto, mas não serei eu“.

Nas perguntas do público pediu-se a Siza para que nomeasse alguns dos seus heróis poetas, tentando saber-se se a ideia de que era um leitor de Konstantínos Kaváfis era ou não um mito. Uma vez mais, Siza recorreu ao humor para falar da arte poética: “A poesia na literatura interessa-me por uma razão muito prosaica. Como tenho falta de vista e me canso rapidamente, os poemas são pequenos e tenho tempo para os saborear. Há uma razão física mas não só. Na poesia o que entusiasma são os japoneses, os haikus, que em três linhas permitem que vejamos claramente o que o poeta descreve, revelando uma capacidade de síntese e de rigor: cada palavra é uma preciosidade“. Tal como cada construção sua.

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Mais cedo neste dia de abertura, “Sua Excelência, de Corpo Presente”, de Pepetela (D. Quixote), foi anunciado como a obra vencedora do Prémio Literário Casino da Póvoa 2020, no valor de 20 mil euros. O Júri, constituído por Ana Daniela Soares, Carlos Quiroga, Isabel Pires de Lima, Paula Mendes Coelho e Valter Hugo Mãe, destacou “a originalidade do estratagema narrativo eficaz para denunciar com ironia uma história do nepotismo e abuso de poder próprio de sistemas totalitários”.

Pepetela (Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos) nasceu em Benguela, Angola, em 1941. Frequentou o Ensino Superior em Lisboa mas acabou por licenciar-se em Sociologia, em Argel, durante o exílio. Iniciou a sua atividade literária e política na Casa dos Estudantes do Império. Como membro do MPLA, participou ativamente na governação de Angola, após o 25 de Abril. A partir de 1984, foi professor na Universidade Agostinho Neto, em Luanda, e tem sido dirigente de associações culturais, com destaque para a União de Escritores Angolanos e a Associação Cultural Recreativa Chá de Caxinde. A atribuição do Prémio Camões (1997) confirmou o seu lugar de destaque na literatura lusófona.

Fotos: Correntes d`Escritas/Câmara Municipal da Póvoa de Varzim

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Pedro Miguel Silva

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