Através de Bill Clegg e do livro “Alguma vez tiveste uma família” (Jacarandá, 2016), vamos ao encontro de uma catástrofe, do luto e da tristeza, mas também da redenção e da renovação.
Trabalhando as histórias individuais e de família de June e Lydia, duas mulheres maduras que viram os seus destinos cruzados pela constituição de uma nova união mas também de uma imponderável perda, do remorso de Silas, um jovem que inusitadamente se confronta com os limites e o descontrolo do seu comportamento e o impacto nos outros, entramos num labirinto de memórias, a fronteira entre o imaginário e o real a desvanecer-se.
De uma morte poderá surgir um projeto de vida? Como se sobrevive, recupera e recomeça? “Quem sou eu?, pensa Lydia. Não sou nada. Nunca fui ninguém, exceto a governanta de alguém, a filha, a mulher, namorada ou mãe.”
Sucedem-se várias personagens, num relato paralelo, inicialmente desligado mas subitamente entrosado num episódio central, numa rede de relacionamentos, de confluência. Acompanhamos as suas vidas abrindo gavetas de intimidade, ao sabor de cada capítulo e de cada parcela de uma história que não se adivinha.
Haverá sítios e pessoas que nos estão predestinados, aos quais pertencemos ainda que ventos e correntes pareçam afastar-nos?
Há “más decisões feitas por medo, executadas como um sentido equívoco de sobrevivência“, que precisam de ser assumidas e compreendidas para serem libertadas. A história das famílias retratadas por Bill Clegg ganham vida, evitando perder-se no tempo, contornando a dor da perda. Para tanto cada personagem activa recursos internos para enfrentar as dores e tragédias que se associam à perda e ao luto.
Ao longo da narrativa os eventos são apresentados dentro do contexto no qual ocorrem e a atenção é focalizada nas conexões e relações, mais do que nas características individuais. Fica a ideia central segundo a qual o todo é maior do que a soma das partes, cada parte só pode ser entendida no contexto do todo e uma mudança em qualquer uma das partes pode afectar todas as outras.
Falar sobre “perda” implica mexer com a intimidade. Revela-se inevitável não parar e pensar nas nossas próprias perdas: as que já tivemos, as que vivenciamos hoje e as que ainda estão por vir. Muitas vezes evita-se falar sobre morte, evita-se entrar em contacto com o nosso próprio sofrimento, agindo como se fôssemos imortais. O maior medo, na realidade, não é da morte em si, mas de como e quando ela se vai fazer sentir. Em “Alguma vez tiveste uma família”, o ensaio é possível partilhando com as personagens essa trajectória.
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