“Fui coleccionado ao longo de mais de cinco anos contos que de uma maneira ou de outra metem água. Ela está sempre presente, doce, clorada, salgada, mais larga ou mais discreta, no oceano aberto onde se experimenta o abandono e a sobrevivência, no duche redentor que muda em narrativa irónica um experiência de quase morte, na saliva que prepara a cinza, na piscina adorada que é meio de transmutação alquímica. Será esta colecção, talvez, em arco abrangente, uma reconciliação pela água: um livro termal, se quiserdes.”
Bem-vindos ao mundo aquático de Luísa Costa Gomes que, com estas palavras, nos apresenta esta colectânea de 13 contos intitulada “Afastar-se” (Dom Quixote, 2021), livro vencedor do Prémio Literário Casino da Póvoa 2022, no qual descobrimos alguns dos princípios fundamentais da sua escrita: ironia, sarcasmo, impiedade e o espírito de nunca fazer prisioneiros.
Afastar-se tem como inspiração o super-atleta Lord Byron, com quem Giuglia, “por um acaso do escadote da biblioteca”, aprendeu “a largueza dos vocábulos” e a “paixão de se atirar para a água e de nadar para longe” – e que será a sua inspiração para uma odisseia náutica onde o desamor chega sob a forma de um petroleiro russo.
Sorriso coloca duas almas em rota de colisão: Anna, assaltada por “um desejo de vingança, mais insuportável que o horror do mal”; e Nino, “um espírito errante à procura de lugar”. Um conto a partir do qual o leitor passará a ter mais cuidado com as expressões faciais.
Cinzas de Pirandello conta-nos as várias versões construídas à volta das cinzas de Pirandello na sua viagem para a Sicília, com um sentido de humor e um ritmo a fazerem lembrar um filme mudo, cheio de solavancos e momentos embaraçosos.
O Grande Azul apresenta-nos a Victor, um tipo que parece ter já definido o seu futuro próximo, jurando “a si próprio que havia de se enforcar num braço de árvore no dia em que sentisse o mundo a fugir”. Até lá, permanece em modo inspira-expira, e até faz um cruzeiro à Noruega para ver se muda de ares (e de ideias).
Desertos, enseadas, covas abertas esconde uma paixão pela piscina de Elisabeth, 14×6 metros que constituem um local contido em si próprio, sem espaço para a moral ou a memória, ideal para quem tem como mantra de vida – ou padrão comportamental – atirar-se às coisas.
Com a Sombra de Palladio e de Gropius, partimos para Saint Croix à descoberta de Regine Olsen, em tempos a musa de Kierkegaard, “que ali viveu cinco anos a meio do século XIX” e que poderá desempenhar um importante papel no romance da narradora.
Híma é uma história recolhida à porta do estranhamente designado Museu da Salga do Peixe, na costa sul da Islândia, nascido de “um monumento erecro ao naufrágio de uma fantasia mal parida que nunca chegara a ser amor”.
Sacrifício não dá ao leitor tempo para respirar, num conto onde há psicanalistas em crise, massagistas habilidosos, mestres em auto-ajuda e alguém que, misturando o real e o imaginário, acabará por se juntar “ao sol dos mortos ilustres”.
Redondilha coloca sob os holofotes “o grande escritor da língua universal”, já velho, com o joelho na calha da operação e uma incapacidade herdade em sorrir.
Gandembel move-se, de forma difusa, entre a ficção, a invenção e a realidade, transportando-nos ao aquartelamento de Gandembel e à guerra de guerrilha por volta de 1968, quando o pai do narrador pôs o desejo da escrita na prateleira por causa de 14 anos de guerra, num tempo em que “uma missão na Guiné equivalia a ser degredado, sem o prazer de ter cometido algum crime”.
Na Baía da Alumbrada, um tablet serve como tábua da salvação, contruindo uma ideia de Paraíso e dando graças ao Amor que não tem cara.
O Tratado de Tavira percorre, de forma zigezagueante, as aventuras e desventuras da amizade, numa história que recua três décadas no tempo.
A colectânea encerra com um poema do desaire, “um passeio numa cidade inédita” onde tudo acontece segundo o desejo da autora (bem, mais ou menos). Se ainda não estão familiarizados com a escrita de Luísa Costa Gomes, esta poderá ser a melhor das estreias. Para os outros, mora aqui mais um festim (ou 13).
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