“A vida começa com gritos de dor de ambos os lados. Essas dores ficam incrustadas nos dois seres envolvidos num nascimento. Nódoas de dor que nunca saem.”
É desta forma fulgurante que arranca “Aaron Klein” (Abysmo, 2020), romance assinado por Paulo José Miranda, que está entre o que de melhor chegou às livrarias este ano. Uma viagem de fôlego entre a ficção e a realidade que, para além de interrogar o poder transformativo dos livros, levanta – entre muitos outros temas – a questão da responsabilidade, seja ela colectiva ou individual, responsabilidade que surge como uma categoria superior da ética.
Depois de mais de setenta anos a viver em Telavive, Aaron regressa à cidade de Lisboa. Aaron é um homem que considera que reclamar é um exercício fundamental de cidadania, e que a comunhão com outros humanos se trata de um dever, cabendo a cada um guiar a sua vida pelo respeito e a responsabilidade. Aaron é um apaixonado de Fernando Pessoa, e essa terá sido uma das razões para o seu regresso a Lisboa. Pessoa que atravessa o livro de uma ponta à outra, quase como um Messias, inventor de “uma espécie de cristianismo estético enraizado na invenção da heteronímia”, que “surge no horizonte humano como possibilidade maior de comunhão do que as hermenêuticas religiosas das três religiões da Jerusalém antiga”.
A narradora que nos conta a história deste homem – que sonha em transformar-se numa personagem de um livro -, Vera de seu nome, torna-se na improvável companheira de casa de Aaron, tendo de cumprir, assim como aconteceu com Leonard quando foi viver com Sheldon na Teoria do Big Bang, três regras e imposições por ele impostas: respeitar os horários, não conversar com ele em qualquer circunstância e ser uma jovem a fazer um doutoramento. Os dois tornar-se-ão pai e filha por responsabilidade, assumindo Vera a tarefa de compreender, mais do que tudo, as linhas invisíveis que tornam o exterior e o interior de Aaron tão diferentes, contrariando de certa forma a máxima de que “a vida humana nunca é”. Uma demanda que a levará a Telavive, entre a procura de quem o pai terá sido e a fuga à ausência que este deixou.
Paulo José Miranda constrói o livro em torno de várias narrativas, linhas temporais, vozes e canais de comunicação. Intercalado com a narrativa principal temos uma espécie de diário de Aaron, escrito em versos, excertos do livro que este se encontrava a escrever, bem como a correspondência trocada entre a narradora com outras personagens centrais ou passagens de livros de Ruth Munzer, a melhor amiga de Aaron, que com ele travou várias batalhas filosóficas, fossem sobre o Holocausto, o papel da arte ou o dever da responsabilidade.
“Aaron Klein” é um daqueles livros onde cabe quase tudo, seja a ética, a filosofia, a religião, um incrível ensaio sobre “A Metamorfose” de Kafka ou um retrato da guerra em Jerusalém, que o autor resume desta forma através de palavras “alheias”:
“Acima de tudo, a guerra que aqui se trava é entre o tempo bíblico, que exige ser reconhecido e primordial, e o tempo actual, que deve ceder o seu lugar ao tempo dos tempos, que é o tempo dos escritos sagrados, quer sejam os dos judeus, os dos cristãos ou dos muçulmanos. Israel é uma esquizofrenia geográfica e Jerusalém o seu coração. Tempo contra tempo. A vida dividida entre aviões, computadores, electricidade e as prescrições das palavras sagradas. A vida dividida entre a esperança concreta messiânica e cirurgias a laser. Palavra contra palavra, Deus contra Deus”.
A certa altura, lemos que “cada personagem é um narrador de si e dos outros, e cada narrador é uma personagem de alguém”. E talvez resida, aqui, uma das grandes mensagens deste livro atravessado quase sempre pela infelicidade. A de que as vidas humanas, até ao suspiro final, podem sempre mudar, impedindo que o mundo se parta ou se torne num lugar pior do que é.
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