Comecemos pela autora, Miriam Toews, de ascendência menonita, que em vários dos seus livros problematiza o papel das mulheres nestas comunidades, profundamente religiosas, com crenças e costumes que as isolam. Em “A Voz das Mulheres” (Alfaguara, 2023), escrito em 2018, regressamos ao período entre 2005 e 2009, numa remota colónia menonita na Bolívia, na qual muitas raparigas e mulheres eram alvo de abusos nocturnos, atribuídos a fantasmas e a demónios, fazendo-as crer que se tratavam de castigos divinos pelos seus pecados. Acabaram por descobrir que vários homens da colónia usavam um anestésico veterinário para as deixar inconscientes e violá-las. Em reacção, as mulheres desta colónia tentaram tomar o pulso aos seus destinos, o que começava por decidir entre ficar e lutar, ficar e perdoar, ou partir, abandonando a colónia e a única realidade que conheciam.
Na actualidade, estima-se que existam mais de um milhão e meio de menonitas em todo o mundo, distribuídos na sua maioria pela América Latina, Estados Unidos e Canadá. Vivem em comunidades muito restritivas, fundamentalmente dedicadas a actividades agrícolas e pecuárias. Rejeitam a tecnologia e usam um vestuário muito simples, representativo de um estilo de vida austero e desprovido de qualquer veio de sedução ou de libido. A separação por sexo impera em quase toda a vida colectiva, estando as raparigas especialmente condicionadas no acesso à escola, a todo o tipo de (in)formação, entretenimento ou contacto com o exterior. A titulo de exemplo, a prática de desporto, a música e o consumo de álcool são consideradas actividades tentadoras e perigosas.
“Tinha tudo o que queria: bastava-lhe convencer-se de que queria muito pouco.”
Toews representa, de forma clara, como estas comunidades fazem uso da deturpação da realidade através do cultivo de ideias persecutórias e ameaças divinas, como estratégia de domínio e perpetuação do amorfismo, e onde o acesso a locais com materiais intelectuais – como por exemplo os livros – é considerado um crime.
Nestas sociedades, quase sempre as mulheres estão condicionadas a todos os níveis. Para as menonitas o destino era o da iliteracia, desde logo na língua do país que não podiam aprender, limitadas ao dialecto da comunidade, vivendo condicionadas pelo sentimento de dívida e de falha relativamente ao grupo e a Deus. Em “A Voz das Mulheres”, perante a constatação da agressão de que eram alvo e da ameaça da sua perpetuação, estas mesmas mulheres procuram dirimir uma sucessão de dilemas, entre ficar e cumprir deveres bíblicos e lutar ou sair, pela preservação da dignidade individual; mas também dos filhos rapazes, que poderiam vir a tornar-se potenciais agressores se continuassem à mercê do comportamento que observavam e normalizavam nos mais velhos. Impunha-se, também, a protecção das raparigas que já eram vítimas sem o saberem, na sua aceitação e complacência com as vontades do colectivo, mais tarde mulheres sem voz, a viver fora do seu tempo e, na realidade, sem pátria – tal o nível de exclusão cultural e funcional a que estavam votadas. Agora, se decidissem partir, como viveriam? Como se sustentariam se não sabiam ler, escrever, falar a língua do país ou sequer situar-se no mapa? O que existiria para além dos limites da comunidade que conheciam? A única certeza que tinham era que o que planeavam não contemplava violência ou imposição de vontade; quem quisesse partir iria, quem decidisse ficar assim lhe seria permitido, aceitando que uma decisão não seria à partida mais determinante do que outra. Pela primeira vez ensaiavam a oportunidade de pensarem autonomamente, aceitando até que pudesse existir quem preferisse continuar na comunidade e perdoar aos homens, que o perdão pudesse ser melhor do que a vingança. Naquele momento, o máximo até então inadmissível de liberdade era tão só poder pensar sem culpa.
“A Voz das Mulheres” é uma dádiva de amor e de solidariedade da autora a todas as meninas e mulheres que vivem em comunidades patriarcais e autoritárias, menonitas e não menonitas, em todo o mundo. Um grito de denúncia dos sistemas sociais controlados pelo determinismo religioso, cultural ou autocrático de quem tem poder formal, económico, ou religioso, com a herança geralmente a passar pela linha masculina. Um apelo a que qualquer um, em qualquer contexto, não se fique pelo determinismo do comunitário, rejeitando coacções de todo o género, mas especialmente todo o tipo de argumentos que condicionam a autodeterminação, seja ela de acção ou tão só de pensamento e expressão. Um grito de alerta para todos os géneros de isolamento disfarçados de autopreservação.
“Despejem homens no meio do nada, confinem-nos, maltratem-nos, suspendam-nos no limbo, e será isto que obtêm.”
Voltando a Miriam Toews, nascida no Canadá há 59 anos, para além da distinção com outros galardões, viu em 2010 o conjunto da sua obra galardoado com o Writers Trust Marian Engel/Timothy Findley Award. Além de “A Voz das Mulheres”, escrito em 2018 e agora editado em Portugal pela Alfaguara (2023), Toews publicou mais sete romances e um livro de não-ficção. “A Voz das Mulheres” foi, em 2022, adaptado ao cinema e premiado com o Óscar de Melhor Argumento Adaptado.
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