Francisco Bosco, filósofo brasileiro, ensaísta e doutor em Teoria da Literatura, apresenta-nos um ensaio sobre as lutas identitárias e novo espaço público brasileiro. Em “A Vítima Tem Sempre Razão?” (Tinta da China, 2018), reflecte de forma sensata, lúcida e sem falsos preconceitos, sobre o debate da liberdade de expressão, do feminismo e das lutas identitárias, partindo da realidade brasileira para tocar num tema transversal a múltiplas sociedades. O debate não é novo, pois estas inquietações “não começaram ontem no Brasil. Mas elas retornaram, nos últimos tempos, com uma intensidade sem precedentes. Atualmente não há uma semana que passe sem uma ”treta”: uma racista, denúncia de relacionamento abusivo ou assédio, um flagrante de comentário racista, um clipe musical acusado de sexualizar corpos de pessoas negras, obras clássicas criticadas pelo conteúdo preconceituoso, um comportamento machista de uma pessoa famosa, etc.”.
Na introdução, o autor apresenta as motivações para a escrita deste ensaio, fazendo um enquadramento cultural do novo espaço público do Brasil, atento às polémicas e situações divulgadas na comunicação social, assim como ao colapso de Lula, “uma espécie de correlato político-institucional da cultura social da cordialidade, isto é, da tendência ao não enfrentamento direito das tensões sociais”. Vivem-se momentos controversos, de “linchamento digital”, de transformações “das relações sociais e institucionais de poder”. É tempo de pensar. Pensar para melhor agir. Pensar para compreender as comunidades minoritárias, as comunidades marginalizadas ou outras vítimas particulares. Urge o bom senso.
A reflexão de Francisco Bosco é apresentada em três capítulos distintos. No primeiro – Da Cultura à Politica – há uma “breve história das autoimagens culturais do Brasil, desde a independência até o presente momento”; no segundo, reflecte-se o “novo espaço público do Brasil”; no terceiro, partilham-se alguns casos emblemáticos, “alguns dos imbróglios recentes desse novo espaço público”. Todos os seis casos apresentados obrigam o leitor a examinar e repensar conceitos como preconceito, estereótipo, racismo, abuso sexual, feminismo e machismo, identidade cultural, diversidade, narcisismo, crueldade ou tolerância, entre outros.
Muito pertinente é a abordagem sobre o conceito de “apropriação cultural”, apresentado no Caso do Turbante. “Uma jovem branca, de Curitiba, relatou em Facebook que uma mulher negra teria questionado o seu direito a usar um turbante (que, segundo a jovem, cobra a sua cabeça rapada por conta de um câncer)“. Afinal, o que se entende, hoje, por cultura? Se a entendermos como o conjunto de actividades e modos de agir, costumes e instruções de um povo, não haverá oportunidade para que o Homem possa evoluir e transformar a realidade? O conceito de aculturação perderá o seu significado? Qual a dinâmica de uma cultura? A questão é séria e pertinente. A este propósito, o ensaio de Francisco Bosco induz-nos ao questionamento sobre “o problema da inexistência, no mundo moderno, de culturas puras”; fala-nos do samba como um excelente exemplo de uma cultura, que resulta da “mistura de negros e brancos, de melodias europeias e contrametricidade africana, mas os sambistas brancos têm muito maiores chances de ascender no star system, cujas regras são feitas por brancos, para privilégios dos brancos”.
Francisco Bosco apresenta argumentos, factos, perspectivas de vários filósofos, antropólogos, sociólogos e outros estudiosos, para tornar compreensível a evolução da cultura brasileira e as posições mais radicais sobre o feminismo. A leitura de “A Vítima Tem Sempre Razão?” obriga-nos a (re)pensar questões de poder, do espaço público versus privado mas, principalmente, o livre arbítrio humano e a fragilidade dos direitos humanos. Excelente leitura para quem gosta de pensar o mundo actual.
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