“Vale a vida inteira ver o jardim espreguiçar-se. O sol espreita, vou sem sono nenhum dar-lhes os bons-dias, coo o café, canto-lhes uma oração da manhã, dizemos bom dia todos juntos e deito-me a elas, de joelhos, aparo as que morrem durante a noite, que algumas vão-se no escuro, nem dou por elas, quase me apetece um dedal para tocar-lhes, que a sua alegria viçosa queima-me os dedos, a minha barba a cheirar ainda a noite, as ramelas que me escaparam, flores da minha vida, cravos teimosos, sempre enfronhados, olhos inchados, os cravos salpicar-lhes água em cima, antes água que cal nas carapinhas de luz, cravos da minha vida(…)”.
Foi ao ler “Os Pescadores”, de Raul Brandão” que Djaimilia Pereira de Almeida encontrou a frase que a inspiraria a escrever “A Visão das Plantas” (Relógio d’Água, 2019). De Raul Brandão herdou a inspiração que se traduz, aqui, numa prosa peculiar, poética e filosófica, onde a reflexão sobre a condição humana marca presença.
“A Visão das Plantas” narra-nos a história do capitão Celestino, antigo pirata, que todos assusta e simultaneamente encanta com as belas plantas do seu jardim. A vida misteriosa e feroz, essa, é passado: “Acordou em casa, restaurado, após uma vida cheia”.
É no jardim, nesse espaço de regresso à natureza original e à pureza espiritual, que Celestino passa os seus dias, cuidando, com o maior dos amores, das suas plantas como quem busca protecção das tentações e dos desvios de outrora: “A rega e o zelo geraram uma infinidade de seres que descobria nos dedos ao mexer na terra: minhocas, besouros verdes, bichos-de-conta. A vida regressava”.
É com e para as plantas que o jardineiro faz as mais belas declarações de amor, que se torna o maior e o melhor dos cuidadores. Durante as manhãs, “a melodia branda das tarefas das flores” marca o ritmo dos dias, não deixando a morte aproximar-se e procurando, “entre os dedos cada vez mais tortos”, as raízes das árvores – ou, no “coração escondido atrás das tatuagens”, a razão da nossa finitude.
O jardim como metáfora. A vida que se procura atrás das sebes, do “som das enxadas na terra, o de um fio de água caindo nos vasos. Pressentidas entre as folhas, as sombras lembravam aos curiosos a vida declinada. Alguns paravam e afastavam as folhas das sebes, espreitavam”. O jardim da vida.
Homem de grandes aventuras, só e de poucas palavras, Celestino “não sabia a língua da terra, só do mar”, apenas conhecia perfume intenso da liberdade, o gozo de fazer, de ajudar a crescer os “cravos, as sardinheiras vermelhas, as ervilhas-de-cheiro rosa-vivo, a ameixoeira”, a viver. Conhecia, mais do que tudo, a solidão dos dias.
Tal como no jardim, são longas e silenciosas as metamorfoses da vida. “Todos os dias o jardim estava diferente. Jamais se entediava. De noite, a Natureza tratava de lhe imprimir o matutino. Pela manhã, saindo ao quintal, vinha dar conta dos casos, dos espinhos, das borboletas, das teias de aranha, dos pulgões e do estado dos alporques dos cravos”. Todos os dias a vida nos guardas segredos, mistérios e uma paleta de odores que perfumam a vida. Tudo se transforma.
“Capitão Celestino amava as flores, se é possível amar sem guardar memória”. Nós, leitores, sabemos que amamos esta escrita, que amamos “A Vida das Plantas”. Um dos livros mais belos publicados em 2019.
Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda em 1982 e cresceu nos arredores de Lisboa. Licenciada em Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa, doutorou-se em Teoria da Literatura, na Universidade de Lisboa, em 2012. Estreou-se no romance em 2015 com “Esse Cabelo”. “Ajudar a Cair”, um retrato ensaístico do Centro Nuno Belmar da Costa, foi publicado em 2017 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Em 2018 publicou “Luanda, Lisboa, Paraíso”.
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