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A Vida Sonhada das Boas Esposas, Deus Me Livro, Companhia das Letras, Crítica, Possidónio Cachapa
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“A Vida Sonhada das Boas Esposas” | Possidónio Cachapa

Por Ana Ilhéu · Em 18/12/2019

“Nasce-se com um potencial absoluto para ser feliz, mas depois o destino, como um rio no Inverno, empurra uns para um lado e outros para outro.”

Madalena despediu-se do marido, subitamente falecido com os 50 anos feitos, ela que era fonte da inveja disfarçada e envergonhada das vizinhas, amigas e até familiares, que ansiavam que, de alguma forma, o mesmo as abençoasse. Mulheres que negavam, escondiam e processavam o cansaço dos casamentos, dirigindo a Madalena o seu pesar, escondendo desalentos e desordens íntimas, guardadas entre quatro paredes e de si próprias, incapazes de o expressar junto dos maridos, romantizando desejos e reciclando mágoas. Incapazes de admitir e anunciar o fim dos casamentos nos quais vegetavam, apresentavam-se como esposas dedicadas, verdadeiras patronas das respectivas famílias.

“A Vida Sonhada das Boas Esposas” (Companhia das Letras, 2019), de Possidónio Cachapa, é um retrato contemporâneo, emocionalmente envolvente e sociologicamente relevante de uma geração de mulheres que parece ter nascido para viver na sombra de alguém, maridos ou filhos, compensando frustrações estruturais com utilidades momentâneas. Impecáveis com tudo e com todos, menos consigo próprias, procurando sentir-se realizadas através da observação do estatuto dos maridos e do sucesso dos filhos.

A Vida Sonhada das Boas Esposas, Deus Me Livro, Companhia das Letras, Crítica, Possidónio CachapaMadalena permite-nos uma exploração etimológica do ser mulher num contexto muito específico e actual – há uma viagem pela origem do ser mulher em família e fora dela, ou para além desta; uma passagem pela cronologia das relações e pela sua agregação a uma determinada identidade; espaço para a fonte, os detalhes e os significados de mudanças estruturais que vão ocorrendo no interior e nas suas opções de vida, em circunstâncias muito específicas. A narrativa é enriquecida pela introdução circunstancial de outros elementos, outras mulheres, outras relações, que contribuem para a ambivalência e evolução da atitude da protagonista. Madalena, como muitos outros, parecia contentar-se com a as recordações douradas e as memórias de um prazer congelado, compensando desta forma a falta de afecto e de perspectiva. Afinal, “fora educada para acreditar que o marido e os filhos, bons ou maus, teriam de lhe bastar até ao fim.”

Em todo o livro, pressente-se e acredita-se ter existido na estratégia de Possidónio Cachapa a introdução e exploração de inferências, que enriquecem não só a história de Madalena mas todas as outras, que se adivinham, sub-repticiamente, presentes.

Em vários momentos é possível deslocar, ainda que temporariamente, o sujeito da história para os dois filhos da protagonista, adultos (des)formatados de relações de interesse e de poder sobre os pais, preponderantemente utilitárias e assentes na premissa de dívida dos primeiros para com a descendência que se advoga superior no pensar e no estar, escondendo ou escamoteando mediocridades várias de sentido e orientação pessoal. Em “A Vida Sonhada das Boas Esposas”, Cátia e Diogo usurpam recursos, cobram dívidas materiais e empurram para a valeta o afecto envergonhado dos pais, especialmente de Madalena, dominada e diminuída pelo pudor de exigir dignidade no tratamento e na atenção. O retrato de uma juventude exigente que parece exigir ressarcimento pela mera existência.

No cômputo, como em obras anteriores, Possidónio Cachapa revela uma subtileza impactante, um relato simples, onde os acessórios não se notam, tudo parecendo natural e escorreito, conseguindo objectivar em Madalena, e nas figuras que a rodeiam, a subjectividade das relações, expectativas e decisões. Acompanhar a evolução da vida dos personagens do livro é de tal forma natural que o resto, o que não é dito, facilmente chega ao leitor. Há na vida de cada um, vidas de outros, representações de tipos de sofrimento e de prazer, de respeito e da falta deste.

“As pessoas não mudam de um momento para o outro só porque saem a correr de um navio onde deviam ter ficado encerradas até ao desembarque final. Mas, quando decidem atravessar um passadiço contra a vontade de seguranças, ou deixam que o exército de nomes feios que tinham amarrado na masmorra da auto-censura se liberte e trucide rostos que antes se viam obrigados a respeitar, alguma coisa acontece. Há um princípio de mudança que se põe em marcha. Abrem-se novas possibilidades de ser-se de novo corajoso”.

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Ana Ilhéu

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