Quando Dante Alighieri (1265-1321) viu pela primeira vez Beatriz Portinari, ficou de tal forma encantado que toda a sua existência até ao momento deixou de ser digna de recordação. É com este encontro que principia “A Vida Nova” (Quetzal, 2021), uma obra difícil de classificar, descrita pelo próprio autor como um “livrinho”, que associa a história do amor pela sua musa a diversos poemas que escreveu – sobretudo sonetos –, contextualizando-os e legando assim à posteridade vislumbres do desenvolvimento da sua arte, bem como dos costumes da cidade de Florença no século XIII.
Na altura do marcante encontro com a “angelical donzelinha”, Dante tem nove anos e ela poucos meses menos. Nada indica que ela o tenha sequer visto, mas ainda assim o amor assenhora-se da alma do rapaz: “o espírito da vida, que habita na secretíssima câmara do coração, começou de tremer tão fortemente que aparecia nas mínimas pulsações com muita força”. Nove anos mais tarde, voltam a cruzar-se e Beatriz saúda-o pela primeira vez, desencadeando nele uma visão que tem tanto de sensual quanto de místico e que conduz à escrita do primeiro soneto do livro. Poucas mais vezes se voltarão a ver até à morte de Beatriz, ainda jovem, e os percalços aqui descritos permitem-nos reconstituir fragmentos do quotidiano de uma sociedade que proporcionava escassas ocasiões de convívio aos jovens de sexos opostos, pelo menos entre as camadas superiores da burguesia citadina, a que ambos pertenciam.
O amor de Dante permanecerá platónico e a sua musa transformar-se-á num símbolo metafísico. Nesse contexto, as dúvidas que surgem quanto à veracidade de alguns factos descritos – destacando-se a omnipresença do número nove, carregado de misticismo – devem ceder perante a construção de uma narrativa que se inscreve na tradição do amor cortês. Segundo alguns investigadores, Dante era abastado e circulava nos estratos mais elevados da sociedade, mas não provinha de uma família nobre, tendo na actividade literária uma fonte importante de prestígio. O enaltecimento do seu amor – o qual, segundo o próprio, é tão virtuoso que não se sobrepõe à razão – permite-lhe reivindicar um enobrecimento moral e espiritual, pelo que, mesmo sem pormos em causa a sinceridade das emoções do autor, importa lermos esta obra cientes de que a Beatriz aqui louvada é mais um ideal intelectualizado do que uma mulher de carne de osso.
Um aspecto em que Dante inovou foi na defesa do uso do idioma falado comumente em Florença, ao qual chamavam “vulgar”, em detrimento do latim, ao mesmo tempo que criticava o recurso à retórica oca: “grande vergonha seria ao que rimasse cousas sob vestes de figura ou de cor retórica e depois, perguntado, não soubesse desnudar suas palavras de tais vestes, de modo que tivessem verdadeiro entendimento”. Graças a Dante, esse idioma foi determinante na uniformização daquilo que é hoje a língua italiana, e esta reedição bilingue, em italiano e português, da premiada tradução de Vasco Graça Moura, que também assina um prefácio notável, oferece-nos uma excelente amostra do génio do autor.
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