Em 2015, a literatura nacional foi prendada com um romance de primeira apanha, qualquer coisa como um cruzamento entre o bem contar Queirosiano e um documentário com o selo da National Geographic, sobre essa Atlântida que um dia foi baptizada de Açores. “Arquipélago” era um romance atravessado pela ideia de epopeia, fosse ela individual ou de um povo inteiro.
Meses mais tarde surgiu a notícia de que Joel Neto estava a preparar um novo livro, lançado em Maio deste ano com o título “A Vida no Campo” (Marcador, 2016). Porém, ao contrário de um novo romance, o leitor tinha agora a oportunidade de espreitar para dentro da casa do autor no lugar de Dois Caminhos, freguesia de Terra Chã, ilha Terceira, onde vive com a sua mulher e dois cães.
No prefácio ao livro – a que o autor chama Anúncio -, fala-se do sentido da Literatura cumprir os desígnios da justiça poética, assente no terreno propício ao nascimento dos heróis improváveis e anónimos da vida. Da literatura como alternativa ao que a História vai deixando de lado.
Depois de duas décadas a viver em Lisboa, Joel Neto mudou-se para os Açores, e “A Vida no Campo” pode ser lido como um diário aberto sobre essa mudança essencial, percorrendo as estações do ano e algumas visitas ocasionais à capital. Nele cabe a infância e a memória, a amizade e o amor, sempre com o engenho literário de alguém que nos tem habituado a grandes crónicas e que possui a arte de escrever (muito) bem e de forma condensada – cada entrada do diário tem, normalmente, página e meia.
Depois de confessar as razões primordiais para tamanha mudança – “uma vida mais barata, menos dependente dos humores da economia” -, Joel Neto fala da (sua) escrita como uma missão de escrever diariamente sobre o silêncio, algo relacionado com a herança e, sobretudo, a memória familiar.
É um diário pessoal, na medida em que nos abre a porta ao dia a dia do escritor na ilha mas, também, um livro que observa os Açores como se tivesse escrito com a ajuda de um drone, contemplando as paisagens e trazendo para as suas páginas os vizinhos que se transformam, de repente, em personagens literárias. Um diário que, nas entrelinhas, mostra o modo como a Literatura cria a partir da realidade, transformando aquilo que os olhos vêem e o coração sente na mais sólida ficção.
Os temas têm muito de insularidade, dos lugares onde o tempo parece andar de forma diferente do mundo urbano: o horror ao desperdício, ensinado pelo campo; o falar da terra, com expressões tão deliciosas quanto cambetas, piscas ou tatões; vacas e bezerros, mas também velhos e lavradores que sussurram na paragem da carreira a horas madrugadoras; a beleza na espera do carteiro; um lugar onde os jornais e o cheiro da tinta impressa ainda fazem sentido; e, claro, a gastronomia, algo de que Joel fala como um crítico reputado e que deixará o leitor a salivar por uma ida aos Açores para experimentar todas as iguarias de que aqui se fala. “Os restaurantes tornaram-se o nosso luxo burguês“, diz a certa altura.
Diário de transformação pessoal, de alguém (por vezes) com um pé dentro e o outro fora da ilha, “A Vida no Campo” é, também, um exercício autoral, que permite assistir à transmutação da vida real em literatura. Em boa literatura.
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