Em 2020, após um hiato que nos fez pensar que Manuel Jorge Marmelo tinha arrumado a caneta permanente no fundo falso da gaveta das meias, chegou às livrarias “Tropel”, um dos grandes romances nacionais desse ano. Uma história centrada num grupo de caçadores impiedosos, decidido a assumir a responsabilidade e o dever de livrar o país da chegada de imigrantes. Isto num mundo do qual era difícil escapar, mesmo que a motivação de mudança estivesse lá, algures, enterrada num local ermo longe do ADN familiar, por alguém que se viu obrigado a colocar um fim precoce à adolescência e a olhar a sensibilidade e a empatia como pecados capitais. Para sobreviver à consciência, justificava-se o injustificável com recurso à palavra divina, levava-se a violência doméstica em ombros, cultivava-se o racismo, recitava-se um discurso de ódio que, também fora do alcance do mundo ficcional, começava a conquistar muitos seguidores. Uma espécie de parente literário do “Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati – citado por aqui –, que mergulhava num lugar ermo e violento, apontando uma caçadeira ao lado mais vil da condição humana.
Já a abrir 2022 – Fevereiro -, confirmando que a literatura não está em perigo, Manuel Jorge Marmelo assinou “A Última Curva do Caminho” (Porto Editora, 2022). Um romance que acompanha o exílio de um escritor que deseja partir, mas não sem antes deixar escrito o “romance definitivo e retumbante”, desafiando tanto leitores – que consideram os seus livros herméticos – como críticos – que o acham “ligeiro e irrelevante”. E que, fazendo malabarismo com o dicionário, o prontuário e a gramática, traz para a frente uma palavra que ficará como remate do livro: safoda.
Deixando para trás o rebuliço da capital e Alba, aquela que não virá e viúva futura, este velho professor refugia-se numa casa em ruínas, pertencente numa outra vida aos seus avós. Uma geografia onde irá revisitar o denso acervo familiar, feito de “orações, ditos, práticas, subtilezas e traquinagens”. Ou de personagens tão míticas quanto Henrique Quarto Coelho, o pai, descrito como “libertino e devasso”; a mãe, devota da “solidão e do íntimo segredo em que obstinadamente se enclausurou”; o Cricas, trisavô cuja lenda diz que “desceu à capital com a bolsa quente e as putas lhe limparam tudo”; ou a primeira mulher que, ao contrário de Alba e do seu cheiro a leite e mel, “cheirava a sangue coagulado e pareecia-se com a mulher em que a minha mãe se transformou: era óssea e amarga, triste como um ulmeiro sem folhas”.
Para além de uma revisitação pessoal, seja da passagem por África ou percorrendo a lista das mulheres que amou – e perdeu pelo caminho -, Nicolau Coelho olha também, com algum pesar, muita ironia e um humor a tocar o picaresco, para computadores e máquinas, muito perto de se transformarem nos senhores de toda a informação, poder e memórias do mundo – num exercício de futurologia com muita Inteligência Artificial à mistura, o escritor vai jogando ao sério com o computador, esperando que seja este a escrever a primeira frase.
Pelo caminho, fala-se de morte e de memória – com a eutanásia e a “dignidade nostálgica das ruínas” no horizonte -, lançam-se bicadas ao ofício da escrita, critica-se o mercado editorial e a política do aproveitamento, por entre nomes e referências várias: a Odisseia de Homero, A Mosca de Cronenberg, os quadros de Paula Rego, o Pepe Carvalho de Montalbán, Copolla e Manuel António Pino a dividirem uma mesma página ou uma personagem de Vilas-Matas que praticava a arte de morrer excepcionalmente bem. No final deste livro-manifesto, talvez o desejo maior de cada um se torne, com o passar dos dias, este: “Ser pó das estrelas. (…) Poeira de uma nebulosa que já morreu”. Até lá, é ir cantando e dançando a vida.
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A referência do pó também é encontrada em “O mundo de Sofia” logo no início do livro, como uma citação.