“A liberdade, a improvável, a impossível liberdade, tão longínqua de Auschwitz que só em sonhos ousávamos esperá-la, tinha chegado: mas não nos levava à Terra Prometida. Estava à nossa volta, mas sob a forma de uma impiedosa planície deserta. Esperavam-nos outras provas, outros trabalhos, outras fomes, outros gelos, outros medos.”
O Holocausto é — e continuará a ser — dos temas que mais fascínio exerce entre leitores e escritores, mas dificilmente alguma obra conseguirá alcançar a força das palavras de quem o viveu na primeira pessoa. Primo Levi dispensa apresentações. A partir da sua experiência enquanto prisioneiro e sobrevivente ao campo de concentração de Auschwitz, tornou-se um nome incontornável da literatura.
Em “A Trégua” (D. Quixote, 2017), Levi relata o que passaram os sobreviventes para chegar a casa após o final da segunda Guerra Mundial. Chegada a “hora da liberdade”, que sentimentos invadem aqueles que a tudo assistiram e ficaram cá para contar a história? Alegria, um “doloroso sentimento de pudor”, pena e duas certezas — “que nunca mais poderia acontecer nada tão bom e tão puro que apagasse o nosso passado, e que os sinais da ofensa ficariam gravados em nós para sempre”.
Enquanto continuação de “Se Isto não é um Homem” — também editado pela D. Quixote—, onde o autor relata o período que passou no campo de concentração, “A Trégua” apresenta um lado da tragédia menos explorado. Acaba por ser como “um diário da viagem rumo à liberdade”, que começa em Auschwitz, passando pela Rússia, Roménia, Hungria, Áustria e, por fim, Turim, onde o judeu italiano nasceu.
Primo Levi apresenta-nos um relato puro e duro, cru, sem artifícios, que ora aparenta ser profundamente sentido, ora oferece um olhar distanciado sobre a realidade, limitando-se à factualidade. Mas isso não lhe retira a emotividade, até porque essa está do lado do leitor, que vai acompanhando relatos impressionantes, descrições aterradoras, não só da experiência do autor mas, também, das pessoas com quem a sua vida se cruza, sem esquecer as crianças. Várias personagens diferentes, vítimas da mesma guerra, vão acrescentando dimensão à narrativa, naquela que é uma batalha constante contra a fome, o gelo e a doença.
O medo, a angústia, a miséria, o testemunhar da morte dia-a-dia e o horror do desrespeito da dignidade humana pulsam na mente do leitor, que é assaltado por muitas questões. Como foi tudo isto possível? No final, o que é que fica? Se há conclusão que se deva tirar deste realista e dramático relato, é que não deveremos esquecer esta página negra da nossa história — que os livros de Levi cumpram esse propósito.
“Naquela hora em que toda a ameaça à vida parecia ter acabado, em que a esperança de um regresso à vida deixava de ser uma loucura, eu estava subjugado por uma dor nova e mais vasta, anteriormente sepultada e relegada para as margens da consciência, por outras dores mais urgentes: a dor do exílio, da casa longínqua, da solidão, dos amigos perdidos, da juventude perdida, e da multidão de cadáveres em volta.”
1 Commentário
Li É isto um homem? e achei tão profundo, triste e comovente que pretendo ler a trégua depois que esse sentimento passar.obrigada pela resenha. Não sou muito adepta de livro de bolso, mas parece que editaram o livro apemas em edição de bolso ♀️