• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
A Trança, Deus Me Livro, Bertrand, Laetitia Colombani
Mil Folhas 0

“A Trança” | Laetitia Colombani

Por Cris Rodrigues · Em 22/08/2018

Publicado em Março deste ano, “A Trança” (Bertrand, 2018) da francesa Laetitia Colombani, teve destaque no nosso país aquando da Noite da Literatura Europeia, onde em boa hora repetimos a visita, como já vem sendo hábito desde 2016 – e que contou com a maravilhosa interpretação de Ana Sofia Paiva.

Nas páginas deste livro viajamos até à Índia para conhecer Smita e a sua filha Lalita. Elas são dalits, intocáveis. Parte daqueles a quem Gandhi chamava os filhos de Deus: sem casta, fora do sistema, fora de tudo. São a parte impura da sociedade, vivendo na margem de tudo e de todos, tendo as ocupações mais indignas e nojentas, suportando humilhações diariamente e horrores às mãos jatts. Smita vive na periferia da sociedade, e é de lá que quer salvar a sua filha tentado dar-lhe algo que não lhe é devido pela sua condição social – Lalita não pode ir à escola ou ter acesso à educação. Os dalits nasceram para sofrer e não possuir nada, mas as mulheres dalits ainda menos. Nasceram para sofrer ainda mais e, muitas vezes, às mãos da família e do marido. De forma simples mas dura, Colombani descreve a realidade da sociedade indiana, que vitimiza e violenta a mulher, cortando-lhe todos os direitos e oportunidades.

“Smita recusa-se. Lalita tem de ir à escola. Perante a sua determinação, Nagarajan acabou por ceder. Conhece a sua mulher, a sua vontade é poderosa. Aquela pequena dalit de pela escura, com quem casou há dez anos, é mais forte do que ele. (…) Smita sorriu secretamente com a vitória. (…) Smita sabe que tem sorte: Nagarajan nunca lhe bateu, nunca a insultou. Quando Lalita nasceu, até concordou em ficar com ela. Não muito longe dali as raparigas são mortas à nascença. Nas aldeias do Rajastão, enterram-nas vivas, põem-nas numa caixa debaixo da areia, logo após o nascimento. As meninas levam uma noite a morrer. (…) A minha filha saberá ler e escrever, diz para consigo, e esse pensamento alegra-a. Sim, este é um dia que recordará toda a vida.”

Se a vida não se avizinha nada fácil ou risonha para esta dalit, a vida de Giulia é ainda digna de um conto de fadas. A adolescente siciliana vive numa bolha, num ambiente familiar protegido e quase ancestral que, tal como na Índia, já não parece coisa dos nossos tempos. No entanto, a falência dos negócios tradicionais e familiares e o peso da imigração que vem do Mediterrâneo são realidade que afectam a vida na ilha. Ainda assim, Giulia não será afectada por eles de forma muito dolorosa. A sua dor é outra, a luta pela presença da mulher num legado de homens: há quase um século que a sua família vive da “cascatura“.

A sua história é bastante colorida face às outras duas mulheres, mas o interessante é ver como a autora tece o tal fio muito ténue, como um fio de cabelo, para unir as três histórias, não só pela importância do cabelo, mas por esse lado longínquo do mundo: a Índia.

“O pai vigia os cabelos como a mamma vigia a pasta. Revolve-os com a ajuda de uma colher de pau, deixa-os repousar antes de repetir o gesto, incansavelmente. É um trabalho de paciência e rigor, e de amor também. Às vezes, Giulia põe-se a imaginar as mulheres a quem as perucas se destinam – os homens sicilianos não usam cabelo postiço, são demasiado orgulhosos, demasiado apegados a uma certa ideia de virilidade.”

A Trança, Deus Me Livro, Bertrand, Laetitia ColombaniNuma busca pela esperança e pela necessidade de reerguer-se e reinventar-se, vamos encontrar, no Canadá, uma mulher destroçada, de nome Sarah. A única que realmente parece viver no mesmo século que nós e, infelizmente, pelos piores motivos: segregação, discriminação e a escravatura imposta pela competição no mercado de trabalho. É isso que mata Sarah, bem mais depressa do que o cancro que a consome. A doença será só uma desculpa para a competição desenfreada que escraviza milhões no mercado de trabalho, mas também para denunciar o quanto a doença é ainda um tabu.

“O que receava acabou por acontecer: Sarah tornou-se o seu cancro. É o seu tumor personificado. Nela, as pessoas já não vêem uma mulher de quarenta anos inteligente, elegante, competente, mas a encarnação da sua doença. (…) Sarah passa os seus dias assim, numa letargia mórbida, num entorpecimento progressivo. Entrega-se à deriva, longe do mundo. Revê mentalmente o filme daquelas últimas semanas, pergunta-se o que poderia ter feito para inverter o rumo dos acontecimentos. Nada, certamente. Tudo se jogou sem ela. Game over. Terminou. (…) O cancro acabará por lhe tirar tudo: o emprego, a aparência, a feminilidade.”

É a dificuldade em ser mulher, mas também a resiliência feminina, que une estas três histórias. Em pleno século XXI, todas são afectadas pela condição de ser mulher. Os contextos, os motivos, as tradições, a sociedade, tudo factores que alteram muito cada história, mas não deixam de se unir na ainda tão presente segregação da mulher.

[themoneytizer id=”19113-19″]

 

A TrançaBertrandDeus Me LivroLaetitia Colombani

Cris Rodrigues

Pode Gostar de

  • Festival 5L, Festival 5L 2025, 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Juan Villoro, José Alberto Carvalho, Nuno Artur Silva, Desenha-me Uma Máquina, Isabel Lucas, Paul Lynch, Miguel Morgado, Bárbara Reis, Rui Tavares, Capicua, Samuel Úria, Utopia, Thomas More, Não Sou um Robô, O Ofício da Língua, A Canção do Profeta, Mil Folhas

    Festival 5L: No que toca à Literatura, somos todos Beatos

  • A Mercearia Céu & Terra, Deus Me Livro, Crítica, James McBride, Dom Quixote, D. Quixote, Mil Folhas

    “A Mercearia Céu & Terra” | James McBride

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • Festival 5L, Festival 5L 2025, 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Juan Villoro, José Alberto Carvalho, Nuno Artur Silva, Desenha-me Uma Máquina, Isabel Lucas, Paul Lynch, Miguel Morgado, Bárbara Reis, Rui Tavares, Capicua, Samuel Úria, Utopia, Thomas More, Não Sou um Robô, O Ofício da Língua, A Canção do Profeta,

    Festival 5L: No que toca à Literatura, somos todos Beatos

    14/05/2025
  • A Mercearia Céu & Terra, Deus Me Livro, Crítica, James McBride, Dom Quixote, D. Quixote,

    “A Mercearia Céu & Terra” | James McBride

    13/05/2025
  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto