Publicado em Março deste ano, “A Trança” (Bertrand, 2018) da francesa Laetitia Colombani, teve destaque no nosso país aquando da Noite da Literatura Europeia, onde em boa hora repetimos a visita, como já vem sendo hábito desde 2016 – e que contou com a maravilhosa interpretação de Ana Sofia Paiva.
Nas páginas deste livro viajamos até à Índia para conhecer Smita e a sua filha Lalita. Elas são dalits, intocáveis. Parte daqueles a quem Gandhi chamava os filhos de Deus: sem casta, fora do sistema, fora de tudo. São a parte impura da sociedade, vivendo na margem de tudo e de todos, tendo as ocupações mais indignas e nojentas, suportando humilhações diariamente e horrores às mãos jatts. Smita vive na periferia da sociedade, e é de lá que quer salvar a sua filha tentado dar-lhe algo que não lhe é devido pela sua condição social – Lalita não pode ir à escola ou ter acesso à educação. Os dalits nasceram para sofrer e não possuir nada, mas as mulheres dalits ainda menos. Nasceram para sofrer ainda mais e, muitas vezes, às mãos da família e do marido. De forma simples mas dura, Colombani descreve a realidade da sociedade indiana, que vitimiza e violenta a mulher, cortando-lhe todos os direitos e oportunidades.
“Smita recusa-se. Lalita tem de ir à escola. Perante a sua determinação, Nagarajan acabou por ceder. Conhece a sua mulher, a sua vontade é poderosa. Aquela pequena dalit de pela escura, com quem casou há dez anos, é mais forte do que ele. (…) Smita sorriu secretamente com a vitória. (…) Smita sabe que tem sorte: Nagarajan nunca lhe bateu, nunca a insultou. Quando Lalita nasceu, até concordou em ficar com ela. Não muito longe dali as raparigas são mortas à nascença. Nas aldeias do Rajastão, enterram-nas vivas, põem-nas numa caixa debaixo da areia, logo após o nascimento. As meninas levam uma noite a morrer. (…) A minha filha saberá ler e escrever, diz para consigo, e esse pensamento alegra-a. Sim, este é um dia que recordará toda a vida.”
Se a vida não se avizinha nada fácil ou risonha para esta dalit, a vida de Giulia é ainda digna de um conto de fadas. A adolescente siciliana vive numa bolha, num ambiente familiar protegido e quase ancestral que, tal como na Índia, já não parece coisa dos nossos tempos. No entanto, a falência dos negócios tradicionais e familiares e o peso da imigração que vem do Mediterrâneo são realidade que afectam a vida na ilha. Ainda assim, Giulia não será afectada por eles de forma muito dolorosa. A sua dor é outra, a luta pela presença da mulher num legado de homens: há quase um século que a sua família vive da “cascatura“.
A sua história é bastante colorida face às outras duas mulheres, mas o interessante é ver como a autora tece o tal fio muito ténue, como um fio de cabelo, para unir as três histórias, não só pela importância do cabelo, mas por esse lado longínquo do mundo: a Índia.
“O pai vigia os cabelos como a mamma vigia a pasta. Revolve-os com a ajuda de uma colher de pau, deixa-os repousar antes de repetir o gesto, incansavelmente. É um trabalho de paciência e rigor, e de amor também. Às vezes, Giulia põe-se a imaginar as mulheres a quem as perucas se destinam – os homens sicilianos não usam cabelo postiço, são demasiado orgulhosos, demasiado apegados a uma certa ideia de virilidade.”
Numa busca pela esperança e pela necessidade de reerguer-se e reinventar-se, vamos encontrar, no Canadá, uma mulher destroçada, de nome Sarah. A única que realmente parece viver no mesmo século que nós e, infelizmente, pelos piores motivos: segregação, discriminação e a escravatura imposta pela competição no mercado de trabalho. É isso que mata Sarah, bem mais depressa do que o cancro que a consome. A doença será só uma desculpa para a competição desenfreada que escraviza milhões no mercado de trabalho, mas também para denunciar o quanto a doença é ainda um tabu.
“O que receava acabou por acontecer: Sarah tornou-se o seu cancro. É o seu tumor personificado. Nela, as pessoas já não vêem uma mulher de quarenta anos inteligente, elegante, competente, mas a encarnação da sua doença. (…) Sarah passa os seus dias assim, numa letargia mórbida, num entorpecimento progressivo. Entrega-se à deriva, longe do mundo. Revê mentalmente o filme daquelas últimas semanas, pergunta-se o que poderia ter feito para inverter o rumo dos acontecimentos. Nada, certamente. Tudo se jogou sem ela. Game over. Terminou. (…) O cancro acabará por lhe tirar tudo: o emprego, a aparência, a feminilidade.”
É a dificuldade em ser mulher, mas também a resiliência feminina, que une estas três histórias. Em pleno século XXI, todas são afectadas pela condição de ser mulher. Os contextos, os motivos, as tradições, a sociedade, tudo factores que alteram muito cada história, mas não deixam de se unir na ainda tão presente segregação da mulher.
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