• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
A Servidão Humana, Asa, Deus Me Livro, Crítica, Somerset Maugham
Mil Folhas 2

“A Servidão Humana” | Somerset Maugham

Por Sofia Lima · Em 15/07/2020

Ler “A Servidão Humana” (Asa, 2016 – reedição) é ler sobre o sentido da vida. Assente na mais profunda das solidões por que cada ser humano passa no seu caminho de auto-descoberta e do seu lugar no mundo, a história de Philip é universal.

Lançado em 1915, depois de vários anos de trabalho árduo, “A Servidão Humana” é o resultado de uma reflexão profunda de Somerset Maugham sobre a existência. Com semelhantes evidentes entre o perfil familiar do autor e do protagonista, na medida em que são ambos órfãos e entregues a familiares distantes, esta história não é mais do que a análise da vida pela filosofia. Ou o contrário. A procura da identidade, desde tenra idade, por parte de Philip, marca o tom silencioso daquilo que é a formação do indivíduo: a procura dos seus sonhos (e o caminho para os realizar), o entendimento do terceiro, a luta contra a adversidade, a queda na realidade.

Comecemos pela religião. Adoptado por familiares que vivem em torno de Deus, porque para si a vida não faz sentido de outra forma (lembremo-nos de que estamos no início do século XX), Philip luta durante anos para entender aquela que é a sua verdade. Por um lado, cresce a acreditar que a sua vida só faz sentido se seguir os passos do seu tio sacerdote, com quem vive. Pretende ser ordenado e viver de acordo com as palavras do Senhor, pelo que o seu futuro lhe augura segurança e estabilidade. Por outro, à medida que o tempo passa e que a sua voz se começa a tornar mais evidente, fruto do seu crescimento intelectual e emocional, Philip duvida sobre a existência de algo maior. Esta guerra interior, personalizada por vozes distintas que habitam o coração e o intelecto do protagonista, leva-o a viver uma crise existencial sobre o que é o destino e sobre a possibilidade que a vida lhe dá para escolher o seu caminho. Talvez seja a história mais velha da humanidade. Roger Martin du Gard conta-a de forma exemplar em “O Drama de João Barois”, publicado em 1913.

Esta é apenas uma das inúmeras facetas de Philip, o que retrata a forma exímia do autor para a criação de personagens complexas. A construção da personalidade do protagonista é a criação de uma consciência e de um ser (literário) que carece de vontades, sonhos, medos, frustrações, fraquezas – e muito mais. Consideremos os pormenores e exigências enumerados por David Lodge em “A Consciência e o Romance” (2002), no qual são apresentadas e estudadas técnicas de autores como Charles Dickens, Martin Amis ou John Updike para a criação de consciência em personagens. Somerset Maugham cria uma pessoa ao longo da história da sua vida.

Mas, o que define Philip? Tudo. A sua experiência de vida torna-o quem é. Desde a infância, momento crucial para a formação de personalidade, em que Philip perde os pais e é atirado para o desconhecido, ao sofrimento por que passa por sofrer de uma deformidade física, às pessoas com que se cruza, aos sonhos que pretende perseguir. E o que é extraordinário é que as mudanças na personagem acontecem gradualmente. Não precisamos de explicações, as mudanças simplesmente estão lá.

A Servidão Humana, Asa, Deus Me Livro, Crítica, Somerset MaughamO amor, por exemplo, é um sentimento dúbio para Philip. Se é o melhor do mundo, por que lhe faz tanto mal? Como é possível que se torne escravo de uma mulher sem formação, desligada emocionalmente, que o maltrata e que está tão abaixo da sua condição social – algo de grande importância para o protagonista? A sua boa vontade e a sua esperança no melhor das pessoas leva-o a estados de profundo sofrimento, durante os quais pondera o suicídio (que pode ser encarado como uma das formas mais românticas de resolver o amor não correspondido em algumas das grandes obras clássicas). Por que está, então, tão ligado a Mildred? Ela parece-lhe desligada, demasiado determinada, obstinada. Tudo aquilo que ele não sente ser. Como jovem adulto, ainda a procurar o seu Eu, Philip entrega a sua alma a uma mulher que é o seu oposto. Ele não a compreende, mas intriga-o a postura de Mildred perante a vida. Talvez porque ele ainda não teria encontrado, nessa fase, a sua própria voz? O tempo passa e ela permanece, de forma mais ou menos próxima, junto dele, mas a reacção da leitura destas passagens é um mero: Porquê?

O mesmo se passa com alguns dos amigos de Philip. Alguns deles, amigos de circunstância, são idolatrados por Philip pelas suas opiniões definidas, pela certeza de resposta a dúvidas existenciais, pela aceitação de que a vida por ser vivida na miséria desde que se seja feliz – sendo que a felicidade de um não é a de outro. E o leitor compreende isto. Só com o passar do tempo, mais uma vez, é que é possível que a personagem compreenda que tipo de relacionamentos desequilibrados eram estes. Como fui capaz de o admirar? À medida que Philip cresce e a vida acontece, ele continua finalmente a encontrar o seu lugar no mundo e a aceitar a sua forma de vida como a possível. Ser adulto traz muito mais preocupações do que as que era possível prever e Philip começa a encarar o seu crescimento com muito mais clareza e realismo: o tipo de relação tóxica com Mildred, por exemplo, ou mesmo a aceitação de que há amizades que ficam melhor no passado. Não, obrigado, responde Philip a um amigo antigo que encontra na rua e que o convida para irem tomar café.

A procura pela sua vocação, a humilhação ditada pelas circunstâncias, a sensibilidade na descrição das suas dores, a empatia para com terceiros e a candura de ser fazem acreditar que Philip existe. Sabendo que há muito de autobiográfico do autor nesta obra, só nos resta esperar por outros momentos para que se possa reler esta história maravilhosa para se encontrarem ainda mais pormenores.

A Servidão HumanaAsaCríticaDeus Me LivroSomerset Maugham

Sofia Lima

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

2 Commentários

  • Sanches comentou: 06/09/2020 at 16:05

    Estou louco para começar essa leitura. Realmente esse livro é incrível, e a ótima resenha ressaltou ainda mais o interesse pela obra.

    Resposta
  • Cinthia comentou: 26/09/2020 at 00:46

    Próxima leitura do Appia, CLUBE DE LEITURA DE PORTO ALEGRE!!!

    Resposta
  • Deixe uma opinião Cancelar

    Siga-nos aqui

    Follow @Deus_Me_Livro
    Follow on Instagram

    Mil Folhas

    • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

      Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

      08/05/2025
    • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

      Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

      08/05/2025
    • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

      “O Som da Mentira” | Amy Tintera

      07/05/2025
    • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

      “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

      07/05/2025
    • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

      “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

      30/04/2025
    Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

    Archives

    • May 2025
    • April 2025
    • March 2025
    • February 2025
    • January 2025
    • December 2024
    • November 2024
    • October 2024
    • September 2024
    • August 2024
    • July 2024
    • June 2024
    • May 2024
    • April 2024
    • March 2024
    • February 2024
    • January 2024
    • December 2023
    • November 2023
    • October 2023
    • September 2023
    • August 2023
    • July 2023
    • June 2023
    • May 2023
    • April 2023
    • March 2023
    • February 2023
    • January 2023
    • December 2022
    • November 2022
    • October 2022
    • September 2022
    • August 2022
    • July 2022
    • June 2022
    • May 2022
    • April 2022
    • March 2022
    • February 2022
    • January 2022
    • December 2021
    • November 2021
    • October 2021
    • September 2021
    • August 2021
    • July 2021
    • June 2021
    • May 2021
    • April 2021
    • March 2021
    • February 2021
    • January 2021
    • December 2020
    • November 2020
    • October 2020
    • September 2020
    • August 2020
    • July 2020
    • June 2020
    • May 2020
    • April 2020
    • March 2020
    • February 2020
    • January 2020
    • December 2019
    • November 2019
    • October 2019
    • September 2019
    • August 2019
    • July 2019
    • June 2019
    • May 2019
    • April 2019
    • March 2019
    • February 2019
    • January 2019
    • December 2018
    • November 2018
    • October 2018
    • September 2018
    • August 2018
    • July 2018
    • June 2018
    • May 2018
    • April 2018
    • March 2018
    • February 2018
    • January 2018
    • December 2017
    • November 2017
    • October 2017
    • September 2017
    • August 2017
    • July 2017
    • June 2017
    • May 2017
    • April 2017
    • March 2017
    • February 2017
    • January 2017
    • December 2016
    • November 2016
    • October 2016
    • September 2016
    • August 2016
    • July 2016
    • June 2016
    • May 2016
    • April 2016
    • March 2016
    • February 2016
    • January 2016
    • December 2015
    • November 2015
    • October 2015
    • September 2015
    • August 2015
    • July 2015
    • June 2015
    • May 2015
    • April 2015
    • March 2015
    • February 2015
    • January 2015
    • December 2014
    • November 2014
    • October 2014
    • September 2014
    • August 2014
    • July 2014
    • Contacto