“A pobreza é das coisas que se aprendem mais cedo. A pessoa sabe que há dois mundos, aquele onde está aquilo que se deseja e um outro, bem mais rasteiro, onde nada do que se quereria, provavelmente, chegará.”
É com este conhecimento que cresce um dos dois protagonistas de “A Selva Dentro de Casa” (Dom Quixote, 2024), o mais recente livro de Possidónio Cachapa. Um texto belíssimo e tocante, feito de doses iguais de ternura e de violência, onde um par composto por um tio e um sobrinho enfrentam, cada um, a sua selva: o primeiro, numa guerra colonial para a qual é recrutado; o segundo, no próprio lar, num bairro operário dos arredores de Lisboa.
Nesse bairro, onde laivos de modernidade convivem com os hábitos das aldeias de origem dos seus habitantes, tio e sobrinho são cúmplices na busca da alegria possível, até à chegada da convocatória que os separa. Para a criança que mais tarde se converterá no narrador, o tio era como um gaiato por dentro, que guardava a vontade de correr e brincar, ainda que “amputada pela necessidade de trabalhar” – alguém capaz de se sacrificar num gesto de amor por ele. Porém, o azar de ter nascido na época errada obriga-o a partir “para sustentar um sonho de império, ordenado por Deus, que não poderia terminar”, nem sequer ser questionado. Afinal, “não viviam no país das perguntas, mas sim no das ordens a obedecer”.

Enquanto o tio aprende que é preciso castigar os ingratos que não entendem as benesses da metrópole, e cede à violência amplificada pela adrenalina, o sobrinho aprende outras lições importantes. Não as da escola, que um professor sádico cedo transforma num pesadelo – “Na primeira classe, aprendíamos que a nossa infância morreria, todos os dias, mais um pouco” –, nem tanto as que podem ser ensinadas por uma família disfuncional, mas as dos livros. Embora a crueldade da mãe – uma mulher amargurada por ter sido desertada pelo marido, mas submissa às senhoras que a empregam e lhe fazem caridade – destrua o amor que o filho lhe dedicava, os castelos de letras proporcionam-lhe um refúgio do “nevoeiro frio da infância”, despertando-lhe a imaginação e revelando-lhe a existência de outros tipos de famílias, além de possibilidades de ascensão social.
Alternando entre as memórias de tio e sobrinho, o autor confronta-nos não só com uma representação impressionante da guerra colonial, mas também com o retrato triste de um país pobre, onde a miséria era interiorizada e aceite como uma predestinação que poucos desafiavam. São memórias dolorosas que nos arrastam num turbilhão de emoções, numa obra a cuja dedicatória é impossível ficar indiferente: “a todos aqueles que adormeceram para sempre, entre palmeiras distantes […] para os que regressaram com a selva dentro […] a todos os homens, mulheres e crianças que ao mesmo tempo viviam uma outra guerra dentro das suas casas […] E, ao meu tio, um outro tio real, enterrado em campa rasa no meio de desconhecidos e de quem me lembro ter visto feliz”.
Sem Comentários