Mário de Carvalho dispensa apresentações. Em “A Sala Magenta” (Porto Editora, 2016 – reedição), vinha reafirmando a sua habilidade de prosador, com a palavra no centro de tudo. A obra, de 2008, agora com novo rosto, foi a segunda consagrada com o prémio Fernando Namora, sendo a primeira o célebre “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde”. Acumulando traduções numa mão cheia de idiomas, a arte literária do autor é conhecida pela visão peculiar de diferentes camadas da sociedade portuguesa, prova da importância de se escrever “para dentro”, algo que não tem de ser hermético para um público além-fronteiras – caso muito semelhante ao nosso cinema, tema esse subjacente ao protagonista de “A Sala Magenta”.
A chegada da velhice não está a ser gentil com Gustavo Miguel Dias. Vítima de um assalto que deixou sequelas físicas, tornou-se um fardo que a ingénua irmã Marta ainda não sabe que vai carregar durante muito mais tempo do que espera. Perto da Lagoa Moura, Gustavo vê-se num retiro forçado numa casa na floresta, onde só pela aparência está focado na escrita do guião para o seu próximo filme. A convalescença sobrepõe-se a qualquer processo criativo, e dela Gustavo parece apenas aproveitar a melancolia que resulta do seu remoer do passado.
Paira sobre “A Sala Magenta” uma desolação de meia-idade, encaminhada para o fim da vida. Desta feita a comédia – ou o trágico-cómico -, marca do autor consolidada em “Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina”, cinge-se aos nomes absurdos dados aos personagens (perdoem-nos as pessoas que se chamam Julião Couraceiro, Silvério Lopo ou Florival Firmino), quiçá a forma que Mário de Carvalho encontra para nos lembrar de que estamos a ler ficção. O aviso bem ao jeito de créditos finais, qualquer semelhança é uma coincidência, é remetido para o início, formulado com um toque de originalidade, o tal toque de prosador: “A acção e as figuras deste romance reportam-se a um mundo ficcional de entrada franca, sem chaves ou gazuas. Procurar moldes da vida real para acontecimentos e personagens é ter em má conta a imaginação do autor. Pode ser que ele o mereça, mas não os lesados por equívocos de leitura.” Sentimos o tamanho de Portugal na preocupação em evitar mal entendidos entre vizinhos.
Com um realismo social bem delineado na base, cedo “A Sala Magenta” apresenta lacunas, ou omissões intencionais, até concluir com a pressa de quem quer pôr fim a uma luta dura com o processador de texto (ou caneta/lapiseira, esses artefactos) e passar de imediato para a próxima ideia. Digamos que Mário de Carvalho está perdido na síntese. Há uma urgência no romance, que por pouco se qualifica como tal, isto se formos na conversa de catalogar pelo volume de páginas. Há uma esperança constante para que o autor dê mais profundidade e dinâmica aos personagens que, à parte do protagonista Gustavo, ficam-se pela mera caricatura.
Mais exposta a juízos de valor parece ser a sexualidade retratada, estereótipo transversal à vida boémia de cineasta, bem como a emancipação feminina que nesses meandros é mais plena, no sentido de nivelar os privilégios entre sexos. Gustavo não tem, então, controlo sobre algo que a tradição vinha a demonstrar ser passível de domesticar, consoante o capricho – a mulher. Eis que das memórias surge sempre em destaque a figura de Maria Alfreda, que se não é a relação da vida de Gustavo, é aquela que mais lhe assombra o momento frágil que atravessa. Talvez uma fixação inexplicável, já que a companheira de outros tempos pouco cede ao ímpeto do coito na antecâmara (a sala magenta) onde recebe o protagonista, que nunca chega a conhecer o seu quarto.
Se o autor pretendia um retrato de uma geração de cineastas que seguiu os passos do “novo cinema português”, e ao entrar na velhice deparou-se com o niilismo anti-sistema de “Branca de Neve” de João César Monteiro, esse retrato peca por demarcar-se, quase por completo, de qualquer sátira mordaz, exceptuando breves apontamentos tão acutilantes que nos levam a suplicar ao autor que vá por aí: “Gustavo quase se convencia, precisava de se convencer, de que a meia dúzia de espectadores bocejantes na sala, os risinhos a despropósito, as debandadas à meia hora, os comentários reticentes dos jornais, o silêncio da crítica eram as torpes ou distraídas manifestações de um presente crasso, que preparavam a aceitação e o espanto de um futuro cintilante (…) E o plano demorado, de foco indeciso, de uma mulher que entra lentamente por um quarto coberto de sombra, que se percebe vagamente que é de dormir, se encosta a uma janela (…) durante dois minutos, deixava de ser uma inépcia amadora e era promovido a sublime apelo ao indizível.” Contudo, sermos leitores mimados que querem o que não está na página de nada nos serve.
Sem arrebatar, temos entre mãos um romance conduzido em ponto-morto, usado numa descida com aquela velha ideia de que se poupa combustível. Há um romance incrível algures, que aborda lindamente a perspectiva masculina da entrega à paixão, e que tem um desfecho brilhante, mais conclusivo que aquilo que possa parecer ao olho destreinado. Não se trata do que “A Sala Magenta” é, mas daquilo que poderia ter sido.
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