Ao folhearmos “A República dos Doutos” (Abysmo, 2023), de Arno Schmidt (1914-1979), a primeira reacção é de surpresa, pelo menos para quem não conhece outras obras do autor, uma vez que a mancha de texto é diferente de tudo a que estamos habituados. Graças à tendência da mente humana para procurar padrões, depressa reparamos que cada parágrafo começa com palavras em itálico, que funcionam como uma introdução ao resto do trecho, cujas linhas seguintes ficam indentadas. Todavia, iniciada a leitura, descobrimos que não é apenas a organização que torna este texto singular. Numa tentativa de reproduzir os fluxos do pensamento e da memória, o experimentalismo estende-se à própria utilização da linguagem, com integração de vários idiomas, onomatopeias, interjeições, notação matemática a servir de pontuação, palavras fundidas e coloquialismos. Toda esta inovação contribui tanto quanto o enredo desta fantasia distópica para desconcertar o leitor.
A narrativa desenrola-se no ano 2008 – que devia parecer suficientemente distante em 1957, data da publicação original – e assume a forma de diário de viagem de um jornalista norte-americano, Charles Winer, a uma ilha artificial chamada IRAS (International Republic for Artists and Scientists). Após dois conflitos atómicos, a Europa foi “desfeita em radiação” e persiste uma guerra fria entre os EUA e a Rússia, mas a IRAS apresenta-se como um “Parnasso flutuante”, construído para albergar artistas e académicos, oferecendo-lhes segurança e condições ideais de trabalho. Porém, para um viajante como Winer, não é fácil lá chegar, sendo necessário percorrer um vasto território onde a radioactividade produziu “saltos mutacionais” grotescos, desde centauros a aranhas gigantes com rostos humanos.
A primeira metade do livro descreve a travessia desta área, na companhia de centauros e de alguns humanos, incluindo militares e cientistas que estudam e manipulam os mutantes. A segunda decorre na ilha, onde as expectativas do jornalista – encontrar os artistas mais eminentes da sua geração e redigir um relatório que o celebrizasse – não tardam a ser goradas, pois o suposto refúgio reflecte as tensões geopolíticas do exterior, e ambas as facções desiludem. Por exemplo, no lado americano, a oportunidade ímpar de acesso a todos os livros do mundo é desprezada: “Trabalharam nada; armados em génios, só mandriaram…”, declara o director da biblioteca acerca dos poetas. Do lado russo, a biblioteca é visitada em massa, mas os utilizadores cometem plágio e submetem-se a métodos de trabalho impostos pela ideologia política que os rege. Em simultâneo, há tensões sociais subjacentes à administração da ilha – note-se a referência ao facto de a “classe nutridora” ser violentamente excluída de participar no governo –, bem como procedimentos biomédicos que chocariam a mente mais aberta de qualquer comissão de ética.
A preocupação do autor com o armamento nuclear, as mutações genéticas e os limites da ciência decorrem, muito provavelmente, de ter vivido a Segunda Guerra Mundial e os anos seguintes. Nascido em Hamburgo, foi recrutado para o exército alemão, acabando como prisioneiro de guerra dos britânicos. Posteriormente, trabalhou como intérprete e tradutor, tendo vivido em isolamento desde 1958 até à data da sua morte, numa cabana na charneca de Lüneburg, no norte da Alemanha. A sua mundivisão pessimista está bem patente nesta obra, mas não exclui um humor mordaz, que aqui se manifesta, sobretudo, nas notas que um tradutor alemão fictício adiciona ao relato do norte-americano.
E por falar em tradução, importa louvar o trabalho do tradutor Mário Gomes sobre este texto desafiador, bem com a iniciativa da Abysmo, que nos permite aceder em português à obra de um dos mais originais autores alemães da segunda metade do século XX.
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