“(…)Dois adolescentes que acabavam de sair de uma sessão de cinema sentaram-se à minha frente. Um deles estava a explicar ao outro que o filme que tinham visto (…) estava muito próximo da realidade: era quase tudo verdade. (…)
– Já viste a quantidade de filmes que têm estreado e que são baseados em histórias verdadeiras? É caso para perguntar se os tipos não estão com falta de inspiração! (…)
– Não é isso…é sobretudo porque o real tem tomates para ir muito mais longe.
Foi aquela frase que me siderou (…): o real tinha tomates. (…) era fruto de uma força superior, muito mais criativa, audaciosa e imaginativa do que tudo o que conseguíssemos inventar. (…) uma imensa maquinação controlada por um demiurgo com um poder incontestável.” (pág. 298)
“A escrita é a destruição de toda a voz, de todo o ponto de origem. É aquele espaço neutro, compósito e oblíquo por onde foge o nosso sujeito, o negativo onde toda a identidade se perde, a começar precisamente pela do corpo que escreve. (…) desde o momento em que um facto é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente livre de qualquer função que não o próprio exercício do símbolo, produz-se este desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor começa a morrer, nasce a escrita.” (Roland Barthes, In “A Morte do Autor”)
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Os thrillers são, ainda hoje, uma referência incontornável para cinéfilos e leitores. Desde os seus primórdios, com cultores de qualidade inquestionável (principalmente na época áurea do film noir, da pulp fiction e do hard-boiled americanos), tornaram-se convincentes formas de entretenimento e, até, de sub-reptício comentário social, formulando a equação cinemática perfeita de argumentos memoráveis, desempenhos interpretativos que fizeram carreiras, técnicas de iluminação e de câmara inovadoras, como o chiaroescuro, os planos picados e os planos suíço, e o desenho sempre dúbio das personagens.
Na Literatura destacaram-se Raymond Chandler, Dashiell Hammett ou Agatha Christie, só para citar alguns. A narrativa caracteriza-se pela tensão e suspense constantes, com uma acção rápida e por vezes violenta e explícita. A tradição do anonimato dos seus autores era vulgar, com muitos dos escritores do estilo a optarem por pseudónimos.
Na 7ª Arte, Hitchcock trouxe o apogeu do género, revolucionando o cinema e a cultura popular e, com eles, a máquina promocional, a selecção de actores, a encenação e até o modo como o elenco, em especial os protagonistas, eram “motivados” a dar o melhor de si a cada “take”.
O britânico controlava tudo o que gravitava em torno do filme, desde a sua génese ao último segundo da projecção, influindo igualmente na sua apresentação mediática, por via do jogo com as perspectivas pré-estabelecidas, paradigmas e emoções mais primárias do espectador, induzindo a primeira verdadeira experiência cinematográfica imersiva de sucesso planetário da história do cinema.
O seu segredo, hoje amplamente divulgado? A manipulação exímia e por vezes perversa e sem escrúpulos. Mas os resultados são inegáveis e hoje é “Vertigo” que ocupa o topo do pódio dos melhores filmes da história do cinema, segundo a crítica mais respeitada.
“Porquê começar por aqui?”, pergunta o leitor ligeiramente baralhado. Desde logo, porque em “A Partir de Uma História Verdadeira” (Quetzal, 2016) o cariz cinemático e cénico é inegável, graças à sua divisão estrutural em três actos: sedução, depressão e traição. Enganadoramente linear, como uma tragédia ou uma série televisiva de três temporadas, este esqueleto onde assentam as formas do romance não é displicente ou casual, enquadrando eficazmente a trama e percurso das personagens e, em simultâneo, uma provocando uma disrupção no contexto narrativo deste género literário. Por outro lado, a personagem principal não é L. ou Delphine, ou qualquer das sombras que gravita em torno da chama de sua relação.
Manipulação. Engano. Mentira. Disfarce. Camuflagem. Duplicidade. Desmultiplicação. Projecção. Eis o elenco principal do livro, onde apesar de pouco se inovar (quer no desenho das personagens, quer nas temáticas) somos constantemente interpelados e questionados, despertados do torpor induzido por uma narrativa de puro desgaste, presente em grande parte da obra.
Aproximamo-nos assim de Delphine, narradora homónima da autora, a que esta última atribui factos biográficos seus para, em seguida, ficcionalmente os reciclar e devolver ao leitor, para que este vislumbre um feixe de luz no buraco negro em que a vida da sua anti-heroína se transforma, encaminhando-a para a anulação total.
“Agora que exponho os factos, (…) tenho consciência de que revelam uma espécie de trama (…) a progressão lenta e obstinada de L., dia após dia delineando o seu objectivo.”
Com Delphine partilhamos a paranóia latente, a insegurança relapsa de uma infância e adolescência problemáticas, o cansaço, numa construção lenta, penosa e inexorável de uma tragédia (através dos clássicos indícios ou presságios estrategicamente colocados em momentos chave) que se anuncia sem se concretizar.
O conceito de mise-en-abyme é fulcral à sua construção e compreensão do romance e da sua protagonista, pelo que urge explaná-lo. Na literatura foi cunhado por André Gide nos anos vinte do século passado, embora a sua utilização fosse já bastante banal, e designa uma recorrência literária em que se opera um efeito de infinita regressão e reprodução sucessiva de determinado motivo narrativo (p. ex. um evento ou uma recordação), que acaba por conferir uma nova camada de significado à obra. Usando o senso comum, é facilmente demonstrável. Imaginem um reflexo num espelho, que vos devolve a vossa imagem a segurar um espelho. A infinidade de reflexos que observam no espelho que seguram surge graças ao efeito óptico de mise-en-abyme.
Exemplo acabado deste jogo de espelhos é a própria Delphine de Vigan e a forma como coloca o leitor perante diversas realidades paralelas, complementares, reflexas, que convergem na obra. O leitor é confrontado com uma Delphine múltipla. Por um lado, sabe que “na vida real” escreveu, quatro anos antes da acção descrita no livro, o grande sucesso da sua carreira – “Rien ne s´oppose à la nuit” -, em que detalha o suicídio da sua mãe e a sua vida familiar, tal como a narradora Delphine.
Por outro lado, o seu romance de estreia “Jours sans faim” (2001) foi publicado sob o pseudónimo de Lou Delvig, cujo nome Lou encontramos, por sua vez, no seu livro “No et moi” (2007), adaptado para cinema, com argumento escrito pela própria. É desta fluidez de identidades e realidades que a autora se serve para urdir este envolvente romance, apropriação ideal para esta época de informação instantânea, já que um aprofundamento da identidade pública da escritora apenas contribui para adensar a trama e, na mente do leitor, dissolver as fronteiras entre a realidade e a ficção.
Outro conceito central é o de duplo, doppelgänger, réplica exacta de alguém, imortalizada pela pena de imortais como Poe, Saramago ou Dostoievski e outros. No folclore tradicional, onde nasceu e se enraizou este mito, o duplo era frequentemente visto como o lado negro da pessoa e simbolizava má sorte e tragédia. A L., encaixa como uma luva este traje.
Escondida com o rabo de fora ao longo das quase 400 páginas do livro (que se lêem com uma voracidade de leão), como qualquer felina que se preze, encontramos a Literatura. Na realidade, “A Partir de Uma História Verdadeira” é uma longa e sonora gargalhada sarcástica de Delphine de Vigan, direccionada ao leitor novo, aos fãs, ao mercado livreiro, à cultura contemporânea e, em particular, à francesa. O thriller, coberto de duplos sentidos e paráfrases, mascara habilmente uma reflexão irónica, realista e sedutora sobre a Literatura nas suas várias fases, com maior enfoque na sua criação.
Delphine, a narradora, e Delphine de Vigan, a escritora, afrontam as expectativas que hoje recaem sobre uma escritora criativa e bem-sucedida, cujo êxito se baseou numa fórmula que não pretende repetir. L., nos seus longos monólogos doutrinadores, procura convertê-la à religião do mercado e ao seu mantra.
“O leitor está-se nas tintas. Tens de encontrar (…) algo mais pessoal, algo que venha de ti, da tua história (…) Pois não resta nada das personagens de ficção, se não tiverem uma ligação ao real.”
O desejo que dela jorrem sucedâneos, que completem a torrente de Verdade inaugurada anteriormente, aprofundando o cariz mais revelatório e sensacionalista da sua escrita, esquecendo a inspiração e até a vontade da própria, é quase opressivo, como se também os livros estivessem já subjugados pela tirania da maioria, perdendo-se irremediavelmente o espaço reservado ao exercício da fantasia e da ilusão.
No seu lugar, banaliza-se o canibalismo e dissecação do autor, como ser humano para além da sua arte, por parte de um ávido exército de leitores, regularmente alimentado pelo marketing das editoras. O escritor, tal como a obra, torna-se um produto transaccionável e perecível, que urge aproveitar enquanto não se gasta a bateria.
“Os escritores têm de concentrar-se naquilo que os distingue, voltar ao cerne da questão. E sabes qual é? (…) dar conta do real, dizer a verdade. (…) É isso que o leitor espera dos romancistas: que ponham as tripas de fora (…) E doravante o dever da literatura é fazer jogo limpo.”
Em entrevista de 2015 à Paris Match, a autora desvenda a questão essencial que subjaz a todo o romance:
“A questão que sustenta o romance é a do verdadeiro. Este livro foi escrito em resposta à fascinação extrema da nossa sociedade pelo verdadeiro, “verdadeiro” na TV, “verdadeiro” no cinema, “verdadeiro” na escrita. Sou muito permeável a esta tendência pesada e profunda. Sou a primeira a ler as revistas “do social”, a interessar-me pelo que há de verdade numa história que me dizem ter sido inspirada em factos reais. (…) É remanescente da fascinação pelo “fait divers”, parece-me. E do culto da transparência. (…) Isto fascina-me e assusta-me simultaneamente.“ (tradução livre)
A verdade a todo o custo, disseminada por toda a cultura como um vírus, surge como um obstáculo quase intransponível e incapacitante, encarnado por L., o anjo mau, o negativo da frágil Delphine.
Em tempos de crise, a literatura é a primeira vítima desta, tal como toda cultura. É encarada como mero escapismo, um acessório bonito para ter por perto na construção de um perfil social, público e aprovado, que hoje se quer com o facebook sempre actualizado, a par dos tempos, mas também sintonizado com esse contínuo que vem sendo tecido desde que a memória foi baptizada como tal.
Se for fácil de consumir, como fast-food para a mente, tanto melhor. As citações costumam resultar bem, para este efeito. E as listas de tudo e mais alguma coisa. Se for uma porta escancarada para a vida alheia, de preferência em linguagem de livro infantil e com factos imediatamente verificáveis em qualquer agregador de informação, ouro sobre azul. Uma capa bonita também convém, excelente para fazer pendant com a pulseira e o relógio…e etc., percebem a ideia.
“Verdade, era isso que as pessoas esperavam, o real garantido por um carimbo nos filmes e nos livros semelhante ao selo vermelho ou biológico dos produtos alimentares, um certificado de autenticidade. Pensava que as pessoas apenas pretendiam que as histórias as interessassem, as comovessem, as apaixonassem. Mas estava enganada. As pessoas queriam que aquilo tivesse tido lugar, algures, que aquilo pudesse ser confirmado. Queriam o vivido. As pessoas queriam identificar-se, sentir empatia, e para isso, precisavam de ter garantias em relação à mercadoria, exigiam um mínimo de traçabilidade.”
Com experiência de sobra no meio cultural e consciente do seu tempo, Vigan serve-se da formalidade literária para elaborar a sua reflexão sobre a literatura, entre factos “verdadeiros” e a mais pura ficção, estilhaçando as estafadas fórmulas de causa-efeito, tão populares em quase todas as omnipresentes listas de livros mais vendidos, das quais, mantendo o seu caminho, acabou por fazer parte e colher os louros. Em entrevista à belga La Libre, fala do registo pretendido na obra e no percurso para o obter:
“No que respeita à autenticidade do gesto e à sinceridade que ele envolve, este livro é provavelmente o meu texto mais pessoal. Espero que ele mostre mais de perto o que é o processo de criação, aquilo que envolve, a origem da escrita. Podia escrever um ensaio, escolhi a forma romanesca. Para mim, partilhar isso com o leitor é extremamente sincero. Tenho a impressão de me ter exposto muito, mais do que noutros livros supostamente mais autobiográficos, e não tive a sensação de manipular o leitor. Para mim, o importante é o modo como contamos uma história: sem procurar agradar, nem estar onde nos esperam, nem satisfazer uma curiosidade, nem continuar o livro anterior. É traçar o seu próprio caminho, saber claramente o que devemos escrever. É de uma extrema intimidade que tal não corresponda a nenhuma necessidade exterior. Talvez alguns leitores gostassem que eu escrevesse sobre o meu pai, mas esse não era o meu trajecto.” (tradução livre)
A ironia suprema começa ainda antes da primeira página do livro – no título. O facto de partir do (falso) pressuposto de que se trata de uma “história verdadeira”, semeando factos auto-biográficos (o marido, os filhos, a vida social, a “casa de férias”, o círculo de amigos…), que manipula e converte numa amálgama ficcional, confirma a paródia à sua anterior obra “Rien ne s´oppose à la nuit”, pesadamente auto-biográfica, e ao próprio sistema editorial, já que, ao mesmo tempo que induz um sentido (forjado) de continuidade no registo autobiográfico (ou pelo menos semeia no leitor a dúvida sobre a veracidade dos factos), entra no território da ficção e com um livro distinto do anterior.
Poderia tratar-se de um compromisso da escritora, mas não é o caso. Qualquer obra escrita, para que possa apelidar-se de literária, por muito que tente inovar, acaba por subsumir-se a um ou vários temas-base que a sustentam. A Escrita, como verdadeira mundividência, em todos os seus vícios e virtudes, assume aqui todo o protagonismo.
A Identidade (a pessoal e a que emana do que é escrito) e a importância do Tempo e da Memória na sua construção e desenvolvimento não lhe ficam atrás, embora aqui para efeitos mais ficcionais (estilísticos e lúdicos), do que propriamente substanciais. Identidade, Memória e Tempo, nas variações a que são sujeitas ao longo de uma vida, são a base estrutural do thriller contido na obra. Uma história de apropriação, quase parasitismo, definitivamente possessão de Delphine por L.. O marido de Delphine, François, constata o óbvio:
“Sabes, por vezes chego a pensar se não estarás possuída por alguém.”
A Memória e o Tempo entrecruzam-se e são o norte magnético onde converge toda a trama, principalmente quanto à narradora Delphine, personagem em busca da autenticidade artística e pessoal, quase sacrificando no processo a sua sanidade mental e física.
Os diários que mantém desde os doze anos até ao nascimento dos seus filhos gémeos, funcionam como referencial para o seu passado e inadvertida projecção no seu presente e futuro. Através deles, logrou fixar os eventos e complexidade de sentimentos de uma adolescência problemática que, de outro modo, se dissolveria com o passar do Tempo.
Por outro lado, essas memórias escritas permitem-lhe a conclusão do seu primeiro livro. Por intermédio da prática quotidiana da escrita, a sua arte evoluiu para a literariedade, sem qualquer preparação consciente.
“Era um tesouro. Aqueles cadernos constituíam a minha memória. Continham inúmeros pormenores, histórias, situações que eu já esquecera. Continham as minhas esperanças, as minhas dúvidas, a minha dor. A minha cura. Continham aquilo de que eu me libertara para conseguir manter-me de pé (…) Aquilo que continua a atormentar-nos, sem nos darmos conta.”
O Tempo é cuidadosamente descrito, ou mantido na obscuridade, conforme o estado de espírito da protagonista e os próprios factos em causa. Evocar o passado é doloroso, porém necessário e quase terapêutico. No entanto, tais verdades nem sempre viabilizam a reminiscência e nestes casos de impotência, a impossibilidade de aguçar o engenho é declarada, qualquer que seja o grau de necessidade. A percepção temporal de Delphine é vaga a espaços, embalada pela dor e pela incerteza que a Memória insiste em guardar.
“Hoje ao tentar reconstituir esta conversa, sinto-me tentada a pensar que L. apalpava o terreno, avaliava a as suas hipóteses de conquista. Mas na realidade não estou certa de que as coisas tenham sido tão claras.”
A Identidade de Delphine é constantemente manipulada, até à regressão, desapropriação e desagregação, a partir do momento em que L. surge na sua vida. Com os acontecimentos do final, e tantos eventos duvidosos ao longo do livro, coloca-se a dúvida, até ao leitor: será que L. existiu realmente, ou tratou-se apenas de um mecanismo mental inadvertidamente criado pela protagonista para ultrapassar o seu bloqueio criativo? Bipolaridade por bloqueio criativo?
“(…)Durante muito tempo acreditei que “emotivo” tinha algo a ver com a quantidade de vocabulário que um individuo possuía: eu era uma menina e-mot-iva (jogo de palavras com (…) “émotif” (emotivo) e “mot” (palavra). (N. da T.))”, ou seja, a quem faltavam as palavras (…) Julguei por isso que para viver em sociedade era preciso dispor de palavras, não hesitar em multiplicá-las (…). O vocabulário assim adquirido iria pouco a pouco criando uma carapaça (…) que me permitiria andar pelo mundo, alerta e confiante.”
Como todos nós em determinada altura da nossa vida, também Delphine desenhou a sua personalidade por forma a subtrair ao olhar alheio os seus pontos fracos. A timidez e insegurança crónicas da infância e puberdade, entretanto dissipadas pela socialização, pelos seus processos defensivos e pela criação literária, tomam-na de forma avassaladora após conhecer L., reduzindo-a a um quase espectro. L., Elle, Ela em francês, inicialmente o negativo de Delphine, paulatina e literalmente, inverte os papéis, chegando uma fase em que a protagonista confessa:
“…em breve, de mim restará apenas uma pele morta, ressequida, um invólucro vazio.”
Apropriadamente era escritora-fantasma. O seu modus operandi consistia em conviver com o objecto da sua obra durante longos períodos, até se dissolver no seu quotidiano e, assim, obter as informações e peculiaridades necessárias à criação de um registo convincentemente íntimo e verdadeiro do “autor”. Escusado será referir que era exímia na sua tarefa.
Em trabalho para o seu objectivo bastante literário, que persegue tenazmente, não olha a meios para atingir o seu objectivo final.
Mais do que um artifício para construção do enredo, o “mise-en-abyme” é uma forma inteligente de incluir diferentes estilos literários no texto, e a sua inexistência inutilizaria toda funcionalidade e pertinência de muitos dos trechos essenciais da obra.
O leitor é conduzido numa descida lenta e irreversível à submissão absoluta de uma mulher a outra. Simultaneamente, a sua paciência, resiliência e expectativas vão sendo testadas e demolidas, emulando, numa dimensão “real”, a desintegração do Eu de Delphine e a sua metódica e infalível apropriação por L..
A impotência é quase palpável, ao testemunharmos os constantes pensamentos e actos conciliatórios de Delphine face ao comportamento progressivamente incompreensível e agressivo de L., como quem assiste ao arder do rastilho de uma bomba impossível de despoletar.
“Sentia o seu olhar indignado, apontado para mim como uma arma. Comecei a sentir-me culpada de uma coisa que ainda não existia (…) não fazia sentido nenhum.”
Nesta dialéctica doentia, é perceptível uma pesquisa aturada na psicanálise e psicologia por parte da autora, e um cuidado extremo na construção das personagens para que a cada acto corresponda uma consequência lógica e não se quebre, pela inverosimilhança, a adesão do leitor a este jogo de submissão.
A experiência na escrita de argumentos cinematográficos é aqui bastante útil e óbvia, contribuindo para conferir particular acuidade e tensão a cada diálogo e silêncio entre as protagonistas.
L., como a consciência da narradora Delphine, antítese de tudo o que a Escrita representa para si, personificação da “anti-literatura”, relembra-lhe, até à derradeira página, os passos para o sucesso literário garantido, defendendo intransigentemente a “verdade” e pugnando para que ela prevaleça na sua escrita. No final, vence. Ou será que não?
Numa das trocas de argumentos mais acesas do livro, L. e Delphine debatem prós e contras para as suas posições sobre a literatura.
“Os leitores (…) esperam mais da literatura (…): esperam o Verdadeiro, o autêntico, querem que lhes contem a vida, estás a perceber? (…)
– É assim tão importante que a vida que se conta nos livros seja verdadeira ou falsa?
– Sim, é importante. É importante que sejam verdadeiros.
– Mas como podem saber? As pessoas, como dizes, talvez precisem apenas que soe bem. Aliás, talvez seja esse o mistério da escrita: soa bem ou não soa. Julgo que as pessoas sabem que aquilo que escrevemos nunca nos é totalmente estranho. Sabem que há sempre um fio, um motivo, uma falha, que nos liga ao texto. E aceitam que substituamos, que condensemos, que desviemos, que alteremos. E que inventemos.”
Assistimos ao confronto entre duas mundividências literárias, diametralmente opostas: a literatura-ficção e a literatura-verdade. A literatura-ficção, representada pela narradora Delphine, em que o Real é trabalhado, interpretado e reescrito, até ao grau de literariedade necessário para poder ser considerada distinta de qualquer mero relato de actos e pensamentos pessoais do quotidiano. Apesar de a defender acerrimamente, Delphine acaba por ceder, perto do final, ao tentar o clássico “virar o feitiço contra o feiticeiro”, desajeitadamente cedendo à cilada de tentar apropriar-se da biografia que L. lhe vai revelando.
“-Mas não há uma verdade. A verdade não existe. (…) Mas começamos a suprimir, estender, apertar, tapar os buracos, estamos na ficção. Andava à procura da verdade, sim (…) Mas toda a escrita é um romance. A narrativa é uma ilusão. Não existe. Nenhum livro deveria ser autorizado a ter essa menção impressa.”
A literatura-verdade, hoje tão em voga, onde o marketing e uma série de alusões à vida do escritor sacralizam o livro, elevam-no a um patamar de maior pureza perante o leitor, por contarem em si o autor.
“Não me refiro ao resultado. Falo da intenção, do impulso. A escrita deve ser a procura de uma verdade, caso contrário não é nada. (…) A única escrita que existe é a escrita de si. O resto não interessa.”
O resultado deste embate talhado por Delphine de Vigan, é uma obra híbrida, que prova que que o livro, qualquer que seja o autor, a circunstância que relata ou em que foi elaborado, não passa de um pretexto para envolver o leitor numa realidade alheia à sua e com essa farsa, dissimular o escritor com o traje que melhor lhe convier. Ganha quem lê, com a diversidade que recebe, e o autor, que vê a sua intimidade reservada à criação e ao deleite dos pequenos nadas que apenas a si dizem respeito.
Por mais contraditório que possa parecer, em “A Partir de Uma História Verdadeira” a literatura surge resgatada como o derradeiro reduto de intimidade, numa época em que quase toda a esfera privada (mesmo a dessa espécie em vias de extinção que são os escritores) se torna pública, global e partilhada. Este livro é a demonstração cabal da personalidade e originalidade que o autor ainda pode imprimir na sua obra, mesmo quando imerso na ficção e no seu mundo interior.
“– Estamo-nos nas tintas para essa verdade (…)/
– Não, não estamos. As pessoas sabem-no, sentem-no. Eu sei-o, quando leio um livro. (…)
– Não achas que consegues senti-lo, como dizes, porque já o sabes? Porque tiveram o cuidado de informar-te de alguma forma que se tratava de uma história verdadeira, ou “inspirada em factos reais” ou «muito autobiográfica», e que essa simples etiqueta bastou para despertar em ti (…) um tipo de curiosidade que todos temos (…) pelos episódios do quotidiano? Mas sabes, não estou certa de que o real seja suficiente. O real, se é que existe, (…) precisa de ser descarnado, transformado, interpretado. Sem um olhar, um ponto de vista, é uma grande seca (…) é um total ansiogénico. E esse trabalho é sempre uma forma de ficção.”
Com um simples asterisco, repetido no início de cada capítulo e no final do livro (cujo significado percebemos finalmente por volta da pg. 230), e com a surpresa final, novamente muito literária, Delphine de Vigan revela-se a verdadeira bonecreira, fabricando um “livro fantasma” sobre ela própria, a sua vida, o ofício da escrita, uma verdadeira e envolvente ficção (que cumpre o objectivo da própria narradora homónima, embora só o leitor, omnisciente graças aos apartes da narradora, o saiba).
O derradeiro mise-en-abime literário é completado pelo leitor, que interpretará o livro dentro do livro dentro do livro, num ciclo interminável de alternância, para no final ser novamente uno.
Chegados à última página, percebemos onde fomos conduzidos, sem que para tal fossemos vítimas de qualquer truque ou engano. Delphine de Vigan, apesar de jogar de acordo com as regras impostas pelo sistema editorial, cumpre o seu plano de escrever ficção e é bafejada pelo sucesso e reconhecimento merecidos. O Goncourt e o Renaudault que juntou ao seu palmarés falam por si. Pela voz da sua narradora, deixa-nos uma mensagem clara no final do livro.
“ – Na verdade, Léa gostava de saber se é sincera. Por vezes, ao ler o seu livro, ela teve dúvidas (…) Aquilo que conta é mesmo verdadeiro? (…)
Por um segundo, tive vontade de responder a Léa que tinha acertado em cheio. Claro que não, era evidente que tudo aquilo era mera efabulação, nada daquilo que eu contara, sucedera (…)
Em seguida, tentei explicar-lhe (…) como o real me parecia inacessível.
– Mesmo que aquilo tenha sucedido (…), não deixa de ser uma história que estamos a contar. Contamo-la a nós próprios. (…) Somos todos voyeurs”…
“Não acredito no tom de verdade (…) Estou absolutamente convencida de que vós, nós, leitores, tantos quantos somos, podíamos ser completamente enganados por um livro que se deixasse ler como verdade e que não fosse senão uma invenção, um disfarce, pura imaginação. Penso que qualquer autor minimamente hábil pode fazê-lo. Multiplicar os efeitos do real para fazer com que acreditem que aquilo que está a contar aconteceu. E lanço o desafio (…) de distinguir o verdadeiro do falso. Aliás, podia ser um projecto literário escrever um livro inteiro para ser lido como uma “história verdadeira”(…) pretensamente “baseado em factos reais”, mas onde tudo, ou quase tudo, fosse inventado.”
“– Seria esse livro menos sincero do que qualquer outro, não estou certa disso. Talvez fosse, pelo contrário, de uma grande sinceridade.”
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