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A Noite da Espera, Deus Me Livro, Companhia das Letras, Milton Hatoum
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“A Noite da Espera” | Milton Hatoum

Por Ana Ilhéu · Em 13/03/2019

“A Noite da Espera” (Companhia das Letras, 2019), de Milton Hatoum, é uma daquelas leituras que nos transporta para uma realidade concreta – Brasil (Brasília) 1968-1972 -, ao mesmo tempo que estabelece uma contemporaneidade com o estar familiar e pessoal de meia dúzia de personagens.

Martin, jovem protagonista, vive a ruptura relacional dos pais, o abandono da mãe e a raiva do pai. Vê-se obrigado a mudar de cidade, de contexto de vida, a descobrir uma nova existência e, através dessa mudança forçada, a confrontar-se com um novo país do qual se mantivera afastado e protegido pela bolha familiar agora rebentada. Começa por sentir-se confuso, angustiado, por vezes até culpado por uma guerra que não era sua. Segue-se a angústia e a sensação de sentir-se dividido e depois abandonado, carente de apoio e afecto, numa “família de sumidos e desgarrados, que não sentem saudades”.

À separação e ao luto difícil de fazer, sendo o reaparecimento da mãe uma iminência alimentada e nunca concretizada, o nosso jovem associou uma notável capacidade de reorganização e redescoberta, de reforço da individualidade emergente.

“Não sei nada da tua vida, mãe. Será que sente mesmo saudade de mim? Só saudades não basta: as palavras e os sonhos não me comovem mais. Em várias cartas, eu disse que desejava sentir teu corpo, escutar tua voz, pelo menos o olhar …”

A Noite da Espera, Deus Me Livro, Companhia das Letras, Milton HatoumMartin descobriu a perda, o abandono e a solidão, mas também uma nova vida em Brasília para onde o pai se mudara, levando-o consigo (pelo menos temporariamente). Cidade dominantemente administrativa, concebida como exemplo de ordem e eficiência urbana, modelo de convivência harmoniosa e integrada de classes, este novo lugar começou por se revelar para o jovem Martin um espaço inóspito, elitista e desprovido de identidade, fervente de “pecados veniais, mortais, mortíferos, …”.

Valeu-lhe a capacidade de, superando uma timidez e reserva dominante, integrar-se num grupo de jovens estudantes e, através deles, ver-se envolvido em iniciativas culturais e reivindicativas. Descobre a sexualidade, o amor, a desobediência, a mobilização por ideais e identidade pessoal e política. Ainda que involuntariamente, quase num registo de sobrevivência emocional, Martin acaba por adoptar e deixar-se ser adotado pelo grupo e pela onda de reacção-oposição social.

“O curso de uma vida depende de certas decisões. Nem toda a decisão é sábia, mas cada ato da vida é uma escolha mais ou menos consciente; às vezes, inconsciente.”

Após o golpe militar de 1964, o Brasil e a Brasília de Martin viam, na segunda metade da década de 70, uma acentuada reação estudantil, com reivindicações educativas e protestos políticos, com grandes manifestações de rua contra a ditadura, militar e duramente reprimidas. Martin começa por ser ver involuntariamente envolvido em tais episódios, acompanhando os amigos, jovens contestatários ao regime, ligados à cultura e à arte, ao teatro, à poesia e à edição de uma revista, meios de afirmação de um novo ideal social e político. No entremeio há contacto com a forma como as famílias reagem e se organizam para encaixar tais acções de uma juventude revolta e contestatária, nalguns casos jovens provenientes de estratos sociais elevados e politicamente comprometidos com o regime vigente.

O relato de Martin em Brasília corresponde, na realidade, a memórias que o próprio recupera, em 1977, já a viver em Paris, manuseando cadernos, fotografias, folhas soltas e outros testemunhos da sua formação sentimental, política e cultural. Através dele, o leitor realiza uma viagem aos anos sombrios e tortuosos da ditadura no Brasil, mas também à auspiciosa capacidade que a juventude revelou para os enfrentar.

“Talvez seja isto o exílio: uma longa insónia em que fantasmas reaparecem com a língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras …”

Primeiro volume de uma trilogia intitulada O lugar mais sombrio, “A Noite da Espera” confirma a arte do brasileiro Milton Hatoum na construção de atmosferas densas e dramas existenciais, por diversas vezes reconhecida com a atribuição aos seus romances de diversos galardões.

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Ana Ilhéu

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