“A Musa” (Editorial Presença, 2017) de Jessie Burton, é sinónimo de suspense até ao fim, ficando-se inacreditavelmente refém de um desenlace que não se adivinha. Eis a magia a acontecer: ler, sentir, ler, ansiar, duvidar, ler e, afinal, Jessie Burton, escritora inglesa, fá-lo com mestria – pelo menos pela segunda vez, depois do sucesso estrondoso do seu primeiro romance intitulado “O Miniaturista”.
“A Musa” é uma novela desenvolvida em duas épocas diferentes: a Londres de 1967 e Espanha em 1936. A trama vai-se sucedendo, articulada de forma subtil, ligada pela arte, pela tragédia e por uma sucessão de segredos. A forma como as pessoas se comportam quando têm um segredo a esconder e a patologia para além disso adensa mistérios e gera frenesim, com muitas reviravoltas e revelações.
A protagonizar o mistério estão duas mulheres: Odelle Bastien, uma jovem proveniente da ex-colónia inglesa Trindade, ilha de Trinidad e Tobago, chegada a Londres à procura da realização como escritora. Começa por arranjar trabalho numa sapataria, passa por dactilógrafa numa galeria de arte e, pelo meio, vê um conto seu ser publicado numa respeitada revista da área, mediante a intervenção de uma requintada e solitária benemérita com a qual começa a trabalhar. Através de Odelle tomamos contacto com o que terá sido a nem sempre fácil integração dos naturais das ex-colónias inglesas em Londres, o constrangimento da cor da pele e a desconfiança pelas origens humildes; e Olive Schloss, uma jovem esconde da família o gosto e o jeito pela pintura, fazendo-o às escondidas por saber certa a oposição do pai – ainda que ele próprio seja um conceituado comerciante de arte que perpetua uma visão conservadora e sexista da mesma e do seu valor, desfavorável à afirmação feminina. Elementos de uma abastada família vienense que se fixa em Espanha, perto de Málaga, reproduzindo os papéis sociais da época, até que a guerra civil espanhola o torna inviável – não fora este um dos episódios mais traumáticos do século XX na Europa antes da segunda guerra mundial. Cedo, a família vê o seu quotidiano preenchido pela presença de Isaac e de Teresa Robles, irmãos espanhóis que para si trabalham, revelando-se Isaac uma improvável revelação como artista ao mesmo tempo que se envolve activamente nos conflitos políticos da época. Simultaneamente, toma-se contacto com a forma como a arte sofreu, mais tarde, os efeitos da destruição massiva.
“A Musa” é um bailado de mistérios e subtilezas, orientado pela vida interior de duas jovens artistas que lidam com o medo e a insegurança da sua arte, os dilemas criativos e de identidade de quem cria e receia a apreciação, a ambivalência entre a vontade de criar e a angústia pela rejeição. O êxtase do artista ditado pela liberdade de criar e, a partir de certa altura, irremediavelmente contaminado pelo sucesso e pela cobrança do exterior.
“Quando comecei a receber reconhecimento público por um acto privado, algo se perdeu efectivamente. A minha escrita tornou-se o eixo em torno do qual girava toda a minha identidade e felicidade. Era-me pedido que repetisse aquele prazer para as pessoas, uma e outra vez, até que o fac-símile do meu acto se tornou no próprio acto.“
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