Teolinda Gersão brilha cada vez mais no panorama da literatura portuguesa contemporânea, onde já se tornou uma voz incontornável. A intemporalidade está decerto ao seu alcance, como se depreende do facto de nada se encontrar datado em “A Mulher que Prendeu a Chuva e Outras Histórias” (Porto Editora, 2021), publicado pela primeira vez em 2007 e reeditado este ano, pela sétima vez, para acompanhar o lançamento da obra mais recente da autora, “O Regresso de Júlia Mann a Paraty”, sobre a qual escreveremos aqui.
O fio condutor desta colectânea de catorze contos breves, distinguida com o Prémio Máxima de Literatura e com o Prémio Fundação Inês de Castro, é o poder transformador das histórias, vividas, narradas ou sonhadas, sendo por vezes esbatidas as fronteiras entre estas categorias. Por exemplo, logo no primeiro conto, “Cavalos nocturnos”, a morte do homem amado rompe o espaço e o tempo, deixando a narradora mergulhada num pesadelo em que as palavras já não fazem sentido, mas continuam a ser procuradas: “E agora que língua falas, penso, em que língua deverei falar contigo para que me ouças, para que me respondas […] agora que também eu estou morta e te procuro?”.
É através do poder evocativo das palavras que uma aldeia africana é transportada para o interior de um hotel lisboeta, no conto que dá título ao livro. É com uma ligeira distorção da realidade que uma criança lida com um trauma, em “A ponte na Califórnia”. É com ilusões, para si próprio e para os outros, que um idoso procura dar sentido ao tempo que lhe resta de vida, em “As tardes de um viúvo aposentado”.
A vertigem causada pelo medo, em particular o medo da morte, é outro tema recorrente. É isso que leva uma mulher a interpelar Deus com a sua tragédia pessoal, em “Se por acaso ouvires esta mensagem”. Também é isso que leva uma jovem estudante portuguesa em Berlim a usar as palavras como um escudo protector, qual Xerazade dos tempos modernos, quando se vê confrontada com um desconhecido ameaçador numa noite fria, em “Encontro no S-Bahn”: “Enquanto eu falasse e lhe contasse histórias, adiava o momento seguinte, em que qualquer outra coisa podia acontecer”.
Existem também momentos de crítica social, sendo a condição feminina abordada de forma trágica em “História antiga”, enquanto algumas correntes educativas são analisadas com um certo humor, segundo a perspectiva de um grupo de crianças, em “O Verão das teorias”.
Cada narrativa é desenvolvida com mestria, prendendo o leitor desde o início e mantendo-o até ao fim na expectativa dos vários desenlaces possíveis. Na sua globalidade, a obra é atravessada por um onirismo raro, por vezes triste ou desesperado, mas sempre belíssimo, que se conjuga de forma surpreendente com personagens realistas, caracterizadas com uma tremenda sensibilidade.
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