Estão a ver aquela pérola cinéfila, trabalhada por Sofia Coppola em 2003, onde Bill Murray e Scarlett Johansson andavam aos papéis, totalmente Lost in Translation? Pois bem, neste “A Morte do Comendador Vol. II” (D. Quixote, 2019), livro que encerra o mais recente romance do japonês Haruki Murakami, estamos – tal como estivemos no anterior volume – num caso de apropriação linguística, feita do uso de muitas expressões correntes onde, por vezes, se torna difícil mergulhar numa cultura que está nos antípodas da nossa. Um pouco como estarmos a percorrer uma das ruas de Xangai e, de repente, darmos por nós a comer uma bifana de Vendas Novas numa daquelas bancas de rua.
Parece forçado? Aqui ficam alguns exemplos: “Nem uma agulha bulia”; “Não querendo cortar na casaca”; “Só me lembro dela aos bochechos”; “Não tugiu nem mugiu”; “Qual é o galho?”; “Meteu por instantes a viola no saco”; “Nunca fui grande espingarda a mentir”; “Hoje estavas cá com uma genica!”; “Seria ouro sobre azul”; “Houve um berbicacho qualquer”; “Uma questão de lana-caprina”; “Tinha um pressentimento do caraças”; ou, para não perdermos mais linhas nisto, “Tu és gajo para te desenrascares”.
Neste segundo e último volume, que tem como banda sonora de fundo “O Cavaleiro da Rosa” de Strauss, Murakami gira em torno da ideia da perpetuação da memória e da imortalidade da alma, colocando as personagens em confronto com o seu eu interior, em busca de sobrevivência num mundo invertido.
O pintor, mergulhado no retrato a três dimensões da pequena e muito rabina Marie – que, segundo ele, tem no olhar a mesma “chama gelada” de Menshiki -, vai ser confrontado com uma situação-limite, obrigado a reviver a morte da sua irmã enquanto tenta um salvamento que implica a suspensão da crença em tudo o que (des)conhece; num estado de decadência irreversível, o Mestre Amada desprende a alma do corpo e regressa à casa onde foi feliz; Tomohiko Amada recorda a morte por suicídio do irmão, um primoroso pianista que se atirava como ninguém a Chopin e Debussy.
Enquanto as personagens estreitam laços, o Comendador conversa sobre ideias, massas e bombas atómicas. Recorda-se uma Viena ocupada pelos nazis e o Massacre de Nanquim, fala-se do sistema militar como “absurdo” e “desumano”, até chegarmos pé ante pé a Fitzgerald, a quem Murakami disse ter querido homenagear com este romance escrito a dois tempos: “Julgo que foi F. Scott Fitzgerald quem escreveu que nunca se deve confiar em pessoas que afirmam ser normais”.
Por falar em normalidade, esta será uma condição avessa à escrita de Murakami, mestre em deixar o leitor a unir pontas soltas, fundindo o mudo real e imaginário na sua versão muito pessoal de um Stranger Things. A certa altura, confrontados no romance com a ideia de habitarmos – ou de termos criado – um mundo sem lógica, descobrimos um diálogo que poderá servir de metáfora para a própria escrita do escritor japonês, onde se fala de alegoria e de morte, com perguntas que são rasteiras e apontam à reconquista – ou, dito de outra forma, à busca do Santo Graal.
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