“Aquilo que aconteceu foi, provavelmente, a história mais comum de sempre”, diz Kim Gordon praticamente no arranque de “A Miúda da Banda” (Bertrand, 2016), uma espécie de biografia zangada escrita por aquela que foi, até há não muito tempo, baixista, guitarrista e vocalista dos Sonic Youth. E, também, mulher de Thurston Moore, vocalista e líder da banda, que acabou por atirar com o casamento às urtigas para ir viver com uma miúda bem mais nova, terminar com a banda e dar início a uma libertadora carreira a solo.
O livro começa, aliás, por se parecer com a biografia de uma mulher traída e abandonada, que decide lavar em público o monte de roupa suja que já não cabia na máquina de lavar. Na página 17, a relação de Kim e Thurston é apresentada através das palavras de Elissa Schappell, num artigo saído na Salon, que reflectia o mesmo olhar com que muitos viam esta espécie de casal-maravilha da vida louca e o que a sua separação representava: “Olhem para eles, pensei eu: estavam apaixonados, casados e a fazer arte. Eram cool e hardcore, com uma profunda seriedade acerca daquilo que faziam, não se tinham vendido ou amolecido. Na era da ironia, onde se finge a indiferença e se cobrem as inseguranças com piadas, eles mostravam ter coração… Há alguma coisa mais assustadora do que um casal que, após trinta anos numa banda criada por si, vinte e sete anos de casamento e dezassete anos a criar uma criança, decide dar as coisas por terminadas? À medida que eles conseguiam, todos nós conseguíamos.” Mais à frente, é a própria Kim a esmiuçar a relação, dizendo coisas como “…pergunto-me se será possível realmente amar ou ser amada por alguém que esconde a pessoa que é na verdade” ou, se preferirem, “…talvez eu me tenha tornado numa pessoa que, como um agrafador, já não funcionava para ele.”
Se, porém, pusermos de lado a revista Caras e nos concentrarmos no que há no livro para lá das tricas de casal, é-nos revelado o olhar de Kim sobre a evolução da música, da arte e de ela própria, escrito de uma forma crua, quase punk, sem quaisquer laivos de poesia ou metáforas coloridas. Veja-se o que a certa altura diz do seu irmão, que se pressente ter desempenhado um papel violento na sua vida: “…brilhante, manipulador, sádico, arrogante, quase insuportavelmente eloquente. É também doente mental, um esquizofrénico paranóico.” Ouch.
São muitos os momentos partilhados por Kim, entre os quais estes: a chegada a Nova Iorque em 1980 e os part-times de empregada de mesa, pintora de casas, funcionária de uma galeria de arte ou a agrafar e tirar fotocópias; a adolescência passada a ouvir Joni Mitchell e a paixão pelo jazz; o namoro com Danny Elfman – sim, aquele das bandas-sonoras do Burton -, o primeiro namorado com que se ligou mais a sério; as críticas políticas, sobretudo a Reagan; as bocas ao que Nova Iorque se tornou hoje, um sítio habitado pelo “consumo e lucro”.
A meio do livro, a biografia pessoal dá lugar às canções, aos discos ou, como Kim o escreve, às “alturas de que me lembro melhor ou sobre as quais tenho mais a dizer. Addicted to Love, por exemplo, nunca foi, nem é, um tema de que gostasse, mas a nossa aproximação conceptual ao mesmo fazia com que a coisa funcionasse. The Sprawl era uma canção divertida de se tocar, e a música era envolvente, ao passo que a letra de Tunic tinha um sentido muito mais abranfente do que o que, na altura me parecia.” A partir daqui o melhor é porem mesmo os discos a tocar enquanto se dedicam à leitura e ao percurso de uma banda que deixou legado.
Muito interessante é a abordagem de Kim ao fim dos anos 70 e a sua ideia de liberdade, bem como a análise que faz aos anos oitenta, aos noventa e, também, ao novo milénio. Isso e a resposta à pergunta do milhão de euros sobre o que procuramos, afinal, quando vamos ver um concerto: “Um beijo sem fim – é apenas isso que queremos sentir quando pagamos para ver alguém a tocar” (afinal também há metáforas bonitas no meio desta escrita em estado punk). Para terminar em grande estilo, fica reservada para as últimas páginas uma bela indirecta, como que a dizer que também ela sabe brincar aos adolescentes. Vai buscar, Thurston!
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