Ler “A Mercearia Céu & Terra” (Dom Quixote, 2024) é ser transportado para Chicken Hill, um bairro esquecido na paisagem americana, mas profundamente presente na memória emocional de quem já se sentiu um outsider — mesmo dentro do próprio país. É nas primeiras décadas do século XX, marcadas por profundas divisões sociais nos Estados Unidos, que James McBride ergue esta narrativa múltipla, povoada por imigrantes judeus, afro-americanos, pessoas com deficiência, pobres e dissidentes. E fá-lo com um gesto literário raro: o de devolver humanidade àqueles que a História institucional tende a apagar.
A escolha do tempo e do espaço não é arbitrária. O leitor encontra-se numa América que se deseja moderna e industrializada, mas que continua a funcionar segundo lógicas de exclusão racial, religiosa e social. A comunidade de Chicken Hill é uma “ilha” dentro de um país que se fragmenta em nome da “ordem“, da “civilização“, do “progresso” — palavras que, na boca do poder, soam sempre como ameaças. E, no entanto, é nessa ilha que se encontra o que McBride mais quer mostrar: a sobrevivência através da convivência.
A xenofobia, que tantas vezes se associa a discursos públicos, acontece nas entrelinhas. Manifesta-se na forma como se olha para Dodo, o menino negro surdo que as instituições querem internar. Na forma como se tolera — e depois silencia — a presença de judeus. Ou mesmo na condescendência com que se trata quem insiste em desafiar essas hierarquias invisíveis. Não há vilões unidimensionais, nem discursos inflamados. Há apenas uma teia de pequenos actos de exclusão, aceites como naturais. E é precisamente contra essa naturalidade que o livro se insurge.
Mas “A Mercearia Céu & Terra” não é um manifesto político. Ou, se o é, é-o através da ficção mais plena. A sua força vem da atenção ao detalhe, à vida interior das personagens, à forma como uma comunidade, mesmo nascida da escassez, pode criar uma ética própria. A mercearia de Chona é o coração desse mundo. Mais do que um negócio, é um espaço de resistência, onde se pratica o cuidado como acto político. Chona, debilitada fisicamente, mas fortíssima na convicção, transforma o seu quotidiano em refúgio e trincheira.

O livro convida o leitor a uma empatia complexa. É impossível não a sentir pelas figuras excêntricas que povoam a história — Moe, Nate, Monkeypants —, mas essa ternura nunca é condescendente. McBride escreve com um humor que não escapa à dor, com um afecto que não poupa às falhas. As personagens não são metáforas: são gente. E é isso que as torna reais. Como Philip Roth, em “A Servidão Humana”, procuram uma resposta para a vida através das experiências que acumulam. Não pela teoria, mas pela acção. Não pelo destino, mas pela escolha.
O que talvez mais se destaque nesta história é a forma como a comunidade se apresenta como uma construção activa. Não é uma entidade estável, nem um espaço puro. É feita de conflitos, negociações, memórias partilhadas e cicatrizes colectivas. McBride mostra como a pertença não se impõe — conquista-se. E que, por vezes, para que alguém pertença, é necessário que outro abdique do seu privilégio, da segurança e do silêncio.
No fim, o que fica de “A Mercearia Céu & Terra” é a sensação de que o passado não está assim tão distante. A forma como se exclui o outro, como se define quem tem valor (e quem não tem), continua a ressoar nas estruturas sociais contemporâneas. Mas McBride, com mestria e compaixão, lembra o leitor que há sempre quem resista. Há sempre quem escolha o bem — mesmo quando ninguém está a ver.
1 Commentário
Foi o segundo livro que li do James McBride, depois de Deacon King Kong. Gostei muito de ambos, o autor dá nos dois livros voz a personagens muito interessantes e marginalizadas da sociedade de uma forma muito inteligente e divertida. Fiquei com vontade de ler mais livros dele.