“A Menina que Sorria Contas” (Objectiva, 2018) é um livro pungente e deslumbrante, relatado na primeira pessoa por uma das autoras da obra, Clemantine (Wamariya) – uma ruandesa refugiada nos Estados Unidos -, que narra episódios verídicos de 1994 aquando do genocídio do Ruanda, umas das maiores calamidades humanitárias do século XX, em que se calcula terem morrido cerca de 800 mil ruandeses, vítimas de extremistas étnicos hútus, que vitimaram não só membros da comunidade minoritária tutsi como, também, os seus adversários políticos, independentemente da origem étnica.
A autora, então com seis anos, e sua irmã Claire – ambas com uma infância idílica na capital do Ruanda -, tiveram de fugir ao genocídio, perdendo-se dos pais e passando seis anos em fuga entre países de África, esfomeadas, violentadas e feitas prisioneiras, vítimas dos actos mais cruéis de que é capaz o ser humano. Isto embora, simultaneamente, tenham assistido a acções de pura bondade e abnegados gestos de solidariedade e vocação humanitária. O livro é um testemunho de grande sensibilidade sobre o preço humano da guerra, recuperando a vivência nesse contexto de inúmeros e injustificados conflitos.
“É estranho como se começa por ser uma pessoa longe de casa e se passa a ser uma pessoa sem casa. O lugar que, supostamente, nos devia receber expulsa-nos. Nenhum outro lugar nos acolhe. É-se indesejado, por toda a gente. É-se um refugiado.”
Quando Clemantine tem doze anos e Claire vinte e um, ambas recebem o estatuto de refugiadas e partem para os Estados Unidos da América. O livro debruça-se não só sobre tudo o que aconteceu em seis anos de fuga mas, também, o que aconteceu depois de se instalarem em Chicago.
As vicissitudes e dramas vividos estão muito presentes na memória de Clemantine Wamariya, que os narra para dar a conhecer o lado humano da Guerra; o que fica para sempre destruído, o que pode ser reparado e a fragilidade/importância da memória, com a esperança de trazer coragem para si própria e para quem a lê, de forma a lembrar os factos reais e a verdade.
Um testemunho pessoal de sofrimento intenso durante o genocídio do Ruanda e, paralelamente, o testemunho de reconstrução de uma vida – hoje é uma respeitada activista dos direitos humanos – a partir dos escombros de uma guerra e em circunstâncias por demais extraordinárias.
“A palavra genocídio não diz a ninguém, não faz ninguém sentir aquilo que eu senti no Ruanda. A forma como me senti no Burundi. A forma como desejei ser invisível porque sabia que alguém me queria morta numa altura da minha vida em que ainda não compreendia o que era a morte. (…) A palavra genocídio não tem capacidade de articular a experiência de cada pessoa (…), a experiência da criança a fingir-se de morta numa poça de sangue de seu pai. A experiência de uma mãe de joelhos, a chorar eternamente”.
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