É um daqueles livros que, graças à recomendação para o 5º ano com vista à leitura orientada, tem sido apresentado a várias gerações, numa introdução à escrita poética e íntima de Sophia de Mello Breyner Andresen. Uma mulher que, para além do imenso e fundamental legado literário, que lhe valeu uma série de distinções tão importantes como o Prémio Camões 1999 ou o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, foi um exemplo de espírito cívico e contestatário, tendo denunciado o regime salazarista e os seus seguidores, apoiado a candidatura do general Humberto Delgado ou subscrito a «Carta dos 101 Católicos», escrita contra a guerra colonial e o apoio dado pela Igreja católica à política de Salazar.
Editado pela primeira vez em 1958, “A Menina do Mar” (Porto Editora, 2021) foi o primeiro conto de Sophia escrito para a infância, partindo da fantasia para embarcar numa viagem poética encantatória. Com a praia como cenário, acompanhamos a história da amizade (aparentemente impossível) entre um rapaz e uma Menina do Mar, que procurarão fazer das suas diferenças o núcleo da sua amizade, decidindo partilhar um com o outro aquilo que os move, apaixona e emociona.
Casa branca em frente ao mar enorme
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas
O rapaz sente inveja das algas que baloiçam ao sabor das correntes, com um ar tão feliz, sentindo pena por não poder ser um peixe. Certa manhã, depois da serena acalmia que sucede a um tremendo temporal, “ouviu uma gargalhada muito esquisita, parecia um pouco uma gargalhada de ópera dada por uma voz de «baixo»; depois ouviu uma segunda gargalhada ainda mais esquisita, uma gargalhada pequenina, seca, que parecia uma tosse; em seguida uma terceira gargalhada, que era como se alguém dentro de água fizesse «glu, glu». Mas o mais extraordinário de tudo foi a quarta gargalhada: era como uma gargalhada humana, mas muito mais pequenina, muito mais fina e muito mais clara. Ele nunca tinha ouvido uma voz tão clara: era como se a água ou o vidro de rissem”.
Essa voz mágica pertencia a uma menina que, pelos cálculos humanos, “devia medir um palmo de altura, tinha cabelos verdes, olhos roxos e um vestido feito de algas encarnadas”, com uma história de vida a fazer lembrar a da cegonha: foi trazida por uma gaivota e, de momento, vive com um polvo – que arruma a casa, alisa a areia e é o responsável pelas compras -, um caranguejo – o chef do gangue – e um peixe – que, aparentemente, nada faz. Um quarteto que tem de estar de olho na perigosa raia, que “detesta os homens e também não gosta dos peixes”, sendo capaz de engolir um navio com dez homens lá dentro.
Para a menina do mar, as coisas da terra são esquisitas. “No mar há monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres. Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas”. Para o rapaz, isso deve-se à saudade, “a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”, mostrando à Menina do Mar coisas tão fascinantes como os mistérios que se escondem por detrás do fogo ou do vinho. Mais tarde, depois de compreender o que é a saudade, a Menina do Mar oferece-lhe o sonho em forma líquida: um suco de anémonas e de plantas mágicas, que lhe permitirá viver dentro da água como os peixes e fora da água como os homens.
Esta nova edição da Porto Editora tem a particularidade de recuperar as incríveis ilustrações que integraram a primeira edição da obra, em 1958, com o selo da Ática, da autoria da pintora Sarah Affonso. O texto foi também revisto, de acordo com notas deixadas pela autora em alguns exemplares. Se ainda não possuem um exemplar de “A Menina do Mar” lá por casa, então comprem este (ou comprem na mesma se tiverem, e coloquem-no a fazer companhia ao outro).
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