Em 1949, Cesare Pavese escreveu “A Lua e as Fogueiras” (Livros do Brasil, 2021), livro agora publicado pela Editora Livros do Brasil, uma história de (re)descoberta e confirmação de identidade, de revelação no confronto com os outros, com a terra e com o poder das histórias que compõem a memória. Tratou-se de um dos seus últimos trabalhos, não imaginando o autor que, volvidos mais de setenta anos, o mesmo se apresentaria tão pertinente e oportuno, numa sociedade actual que continua ávida de atribuir sentido e respostas às questões de identidade e de pertença individual.
A globalização dita a efemeridade do presente, do local a que se chama casa. A omnipresença das tecnologias, parecendo atenuar as distâncias, continua a não conseguir superar a comoção do cheiro, do toque e do prazer de virar o olhar em função do som ou da aragem que chega a quem está lá. A narrativa de Pavese é dinâmica, fornecendo memórias e ideias.
“É preciso ter uma terra, mais que não seja pelo gosto de a deixar. Uma terra quer dizer não estar só, saber que nas pessoas, nas plantas, no chão há alguma coisa de nosso, que mesmo quando lá não estamos fica à nossa espera.”
Através da personagem do narrador, um homem de 40 anos que, após enriquecer na América, regressa a Itália, à sua aldeia e aos caminhos que percorreu quando ainda desconhecia os limites do horizonte – onde não descortinava mais do que a parca sorte lhe tinha bafejado -, Pavese escortina a formação de identidade, a preservação da memória, o sentido de pertença, a necessidade de partir para querer voltar, a desconstrução de determinismos e caminhos de sentido único. Este homem que agora regressa, fá-lo depois de há mais de 20 anos ter partido sem propósito que não fosse o de se libertar do rótulo de bastardo e do destino de pobreza, criado num asilo e, depois, por uma família que viu nele pouco mais do que dois braços e duas pernas para trabalhar, alguém que, desconhecendo quem o pôs no mundo, ainda assim nunca deixou de se sentir parte dele. Durante anos observou o crescimento e a afirmação de outros aparentemente mais bem providos de recursos internos e de riqueza material. Mas ele tinha outro tipo de fonte: a vontade de prosseguir menos agrilhetado, primeiro fugindo, depois provando aos outros ser alguém, e por último provando a si mesmo ter alguém que o guarda em memória e em vida, apesar da ausência dos laços de sangue.
Ao regressar à terra de onde saíra procurava ver o que já tinha visto, confirmando a sua própria existência: as carroças, os palheiros, um cabo de enxada, as colinas e encostas, as árvores, as pessoas desprovidas de vida e ainda assim vivendo, velhos de cara enrugada e novos com rostos comedidos pela falta de horizonte e, ainda assim, capazes de verem o mundo nos que chegam e partem, ainda vorazes de quebrar o determinismo a que os votaram e ao qual os próprios se acomodaram. Uns conseguem-no, outros nem tanto. Uns viajam sem sair, adeptos de um imobilismo consciente; outros simplesmente vergam-se perante as barreiras do horizonte e das fronteiras conhecidas, dos casamentos de oportunidade, dos arranjos de sobrevivência. Ainda assim, todos eles à sua maneira mudam, nem que seja para pior, adoptando um mutismo maior, sonhos cada vez mais pardos e dias ditados por amorfismo.
“Quem poderá dizer de que carne sou feito? Corri mundo o suficiente para saber que todas as carnes são boas e se equivalem, mas é por isso que a gente se cansa e procura ganhar raízes, ter terra e um lugar, para que a sua carne valha e dure alguma coisa mais que uma vulgar mudança de estações.”
Parecem subtis, mas ainda assim impossíveis de ignorar, as semelhanças entre as personagens e o argumento deste livro e a própria vida do autor, o qual, na altura em que o escreveu pouco antes de morrer, visita os locais da sua infância, onde reencontra as pessoas que virão a ser personagens de “A Lua as Fogueiras”. Parece igualmente impossível de ignorar a representação crítica que o autor faz de uma sociedade fragmentada e injusta no pós-guerra, à qual sempre se opôs de forma combativa, lutando contra a forte estratificação social e determinismo ditado pela riqueza e pela subjugação, a falta de equidade e a dissonância entre esforço e ganho.
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