“(…)Continuo a pensar que escrever nos salva a vida. Quando tudo o resto falha, quando a realidade apodrece, quando a nossa existência naufraga, podemos sempre recorrer ao narrativo.”
A loucura, a realidade, a memória e a imaginação são temas centrais – ou até fulcrais – em “A Louca da Casa” (Livros do Brasil, 2017), bem como em outras obras de Rosa Montero. A descrença no passado e nas memórias em prol da função criativa e nutritiva da imaginação abrem espaço para toda uma outra forma de viver e interpretar a vida. É o tal “bichanar da criatividade” que pauta os dias da autora e que ela julga ser importante para que o lado imaginário não morra. A morte prematura desse lado mais infantil, mais alucinado, pode causar um estado adulto muito profundo e, por sinal, enfadonho e desenraizado. Alimentar a “louca da casa“, ou seja, esse lado, meio louco do imaginário, é potenciar uma existência mais duradoura e saudável. Vem daí a ideia de que os livros nos salvam. Talvez até se possa dizer que este livro é, em si, um elogio à loucura.
No entanto, a loucura mais negra e tóxica também é aqui descrita como uma viagem, uma possibilidade de aceitar o medo e as crises como elementos de criação e de convivência com um outro lado. Um lado nosso, que desconhecemos e que também é cheio de novidades – estejamos nós despertos e abertos para o aceitar.
“Acabei por perder o medo ao medo e por aceitar o facto de a vida possuir uma percentagem de negrume com o qual é necessário aprender a conviver. Hoje chego a considerar aquelas crises um verdadeiro privilégio, porque foram uma espécie de excursão extramuros, uma pequena viagem turística pelo lado selvagem da consciência.”
Essa excursão extramuros acarreta algum sofrimento. No entanto, essa peregrinação é necessária para abraçar um lado mais sombrio, que pode mesmo justificar um lado mestiço e complexo que a literatura assume actualmente, num misto muito grande de géneros, todos eles misturados num só livro ou livros de um só autor.
“A realidade não é mais do que a tradução redutora da imensidão do mundo e o louco é aquele que não se adapta a essa linguagem.”
Muitas são as questões que Rosa Montero aborda neste seu ensaio romanceado, fazendo jus a algo em que afirma acreditar: que a literatura serve, antes de mais, para lançar questões e não para dar respostas prontas a usar, desvalorizando assim autores muito panfletários que usem os seus romances para disseminar mensagens. Para além do mais, o romance deve perdurar impreciso, desmesurado e meio deformado, tal como a realidade que abarca. Só assim será um reflexo da vida.
“Passados poucos meses, o assunto do desaparecimento da minha irmã tinha-se transformado num daqueles tabus que tanto abundam nas famílias, lugares demarcados e secretos por onde ninguém transita, como se esse acordo tácito de não revisão e de não menção fosse a base da convivência ou mesmo da sobrevivência dos membros do grupo familiar.”
Montero explora, de forma muito próxima, temas que são comuns a todos, mas fá-lo com recurso a episódios biográficos de vários autores e excertos das suas obras, algo que chega a criar uma sensação de proximidade entre todos – eles e nós -, criando um ambiente bastante familiar, unindo-nos a todos. Tal como os livros fazem.
“E uma ultima reflexão sobre por que razão o triunfo pode destruir de uma forma superlativa os romancistas. Porque o sucesso, na sociedade mediática de hoje, já não está relacionado com a glória, mas com a fama (…) a fama, “essa soma de mal entendidos que se concentram em redor de um homem”, como dizia Rilke, é um vertiginoso jogo de espelhos deformadores que nos devolvem milhares de imagens de nós próprios, imagens todas elas falsas e alienantes, e essa multiplicação de eus mentirosos pode acabar por ser especialmente nociva para alguém como o romancista, um ser que tem as costuras da sua identidade um pouco rasgadas…”
A existência limitada e o não confiar nas memórias deixa à imaginação um trabalho árduo para que o escritor seja um ser louco e inquieto, capaz de alimentar um pensamento independente que converta essa capacidade inata para complicar em romances belos, baleiescos, capazes de arrebatar o leitor e transportá-lo para viagens um tanto esquizofrênicas e tão necessárias à vida.
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