Ano de 1885. À volta do berço de uma menina baptizada Karen Christenze Dinesen – que receberá depois a alcunha de Tanne – encontram-se sete fadas, entre as quais está Nietzsche, que como prenda lhe leva um exemplar de “Assim falava Zaratustra”, contando-lhe ainda uma história intitulada “O camelo, o leão e a criança”, as três metamorfoses do espírito. A seu lado estão também um leão, Sherazade, Shakespeare, um rei africano, uma cegonha e o próprio diabo.
É este o estranho e surreal ponto de partida para “A Leoa -Um Retrato Autobiográfico de Karen Blixen” (G. Floy, 2017), uma adaptação muito livre de Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg, autores de “O Astágalo”, sobre uma das mulheres mais livres da primeira metade do século XX que deixou, sobretudo na cultura dinamarquesa, uma marca muito forte e pessoal.
No início somos apresentados à avó materna de Karen, que “reinava como um verdadeiro tirano sobre um pequeno exército de sete crianças“. Uma dessas crianças era Ingeborg Westenholz, mãe de Karen, “um modelo de virtude e de bondade cristã“. Já Wilhelm Dinesen, o pai, seria o mais novo de oito irmãos, acalentando “um indomável e incessante sonho de outros lugares“.
Mesmo que a mãe não permitisse favoritos, Karen era de longe a preferida do pai, que nela reconhecia a “voz interior que tinham em comum, e que chamava incessantemente pela liberdade“. Anos mais tarde, depois de se ter entregue sem sucesso à “escolha virtuosa do casamento e da família“, Wilhelm acaba por se suicidar, desenhando dessa forma o primeiro paraíso perdido para Karen.
Como era hábito na época entre famílias abastadas, Karen não frequentou a escola, tendo nos livros de Jane Austen, Kierkegaar, Selma Lagerlöf, Joyce ou Baudelaire os seus grandes professores, ainda assim “insuficientes para satisfazer a sua ideia de existência”.
Em 1903 ingressou na Academia de Belas-Artes de Copenhaga, mas também aí as diferenças e o tratamento entre sexos era gritante, pelo que a pintura e o desenho nunca foram mais do que uma actividade de lazer.
A ocasião para escapar à sua condição de mulher dinamarquesa do século XIX, protestante e de classe média, surgiu quando conheceu Daisy Friss, uma das filhas do Conde Mogeus, primo do pai de Karen e seu melhor amigo. Será pouco tempo depois que dará de caras com Hans Von Blixen-Finecke, sobrinho de Agnes, que em vida tinha sido a maior de todas as paixões do pai. Um amor que não encontrou eco no conde, restando a Karen interessar-se pelo irmão deste, Hans, com quem vai viver para África em 1913, o continente que se tornará a casa e grande paixão de Karen.
O livro acompanha depois a passagem de Karen Blixen por África e um regresso forçado a casa, o divórcio e a descoberta do amor da sua vida, a luta pelos direitos dos nativos que travou, a sua viragem para a literatura sob o pseudónimo de Isak Dinesen, bem como o caminho do anonimato para uma fama de dimensões mundiais e sobretudo de causas – entre as quais o Fundo Rungstedlund, destinado a proteger o lugar onde nasceu e os muitos pássaros que nele criaram casa, pássaros que eram uma das suas grandes ligações ao pai.
Os desenhos a aguarela são de grande requinte, tanto na forma como mostram o corrupio na cidade como, sobretudo, o encanto dos grandes espaços do continente africano ou as abertas naturais urbanas, sempre na presença de um humor muito próprio e de uma melancolia que se sorve como um rebuçado. A edição em capa dura e de grande formato faz de “A Leoa” uma das mais bonitas biografias disponíveis no formato de banda desenhada.
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