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A Janela Alta, Raymond Chandler, Deus Me Livro, Livros do Brasil, Crítica
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“A Janela Alta” | Raymond Chandler

Por Pedro Miguel Silva · Em 24/08/2021

Se tivermos de escolher alguém que tenha contribuído para que a literatura policial deixasse de ser olhada como um género menor ou menos recomendável, esse alguém será certamente Chandler. Raymond Chandler. O mais curioso é que este apenas decidiu tornar-se escritor de ficção policial aos 44 anos, após ter perdido o seu emprego de executivo numa companhia petrolífera durante a Grande Depressão.

Nascido em 1888 na cidade de Chicago, Chandler mudou-se sete anos mais tarde para Inglaterra com a sua mãe, onde frequentou o Dulwich College – por onde já haviam passado importantes escritores do séc. XX como P.G. Wodehouse ou C.S. Forester. Regressou aos Estados Unidos em 1912, estabelecendo-se na Califórnia onde conheceu Eugénie Hurlburg, com quem se viria a casar em 1924.

A sua primeira história, “Blackmailers don’t shoot”, foi publicada na Blackmask, uma popular revista pulp. “The Big Sleep”, o seu primeiro romance, viu a luz da edição seis anos mais tarde, apresentando ao mundo Philip Marlowe, um detective com um estilo muito particular. Durante a sua vida, para além de algumas short stories, Chandler publicou sete romances. Com excepção feita a “Playback”, todos eles tiveram adaptação cinematográfica, alguns por mais de uma vez.

Após a morte da sua mulher, Chandler voltou a beber, chegando a tentar o suicídio. Morreu em 1959, tendo expressado o desejo de ser cremado e colocado junto às cinzas da sua mulher. Em vez disso foi enterrado no cemitério de Mount Hope, uma vez que não havia deixado instruções para funeral ou enterro. Em 2010, Loren Latker, o biógrafo de Chandler, conseguiu com o apoio de uma advogada levar a bom porto uma petição para reunir as cinzas de Cissy às de Chandler no cemitério de Mountain Hope. Desde então, partilham a mesma inscrição tumular: “Dead men are heavier than broken hearts”. A poesia de Chandler tornou-se eterna.

Numa introdução a “Trouble is my business”, livro que reúne uma dúzia das suas pequenas histórias detectivescas, Chandler desvendou a fórmula para se escrever uma boa história policial, mostrando a diferença entre o espírito das revistas pulp e as anteriores histórias policiais. Enquanto a base emocional de uma típica história policial – ou de detectives, se preferirem – é a de que o crime será desvendado e a justiça feita, tornando de certa forma insignificante o caminho até à revelação do final apoteótico, para Chandler a construção de cenas suplanta o desvendar da trama, uma vez que uma boa história é feita de cenas fragmentadas e bem construídas. A prosa de Chandler criou um grande número de admiradores, refinada com diálogos afiados, sorrisos líricos e muita poesia, que revela um poderoso lado fotográfico.

Philip Marlowe, o detective saído da imaginação de Chandler, continua a ser porventura a maior criação de todos os tempos no universo policial, suplantando companheiros de profissão como Holmes, Maigret ou Poirot – e servindo de inspiração a escritores contemporâneos (não terá Harry Hole, o inspector criado por Jo Nesbo, uma costela Marlowniana?).

Por detrás de um hábito alcoólico compulsivo – quase sempre acompanhado por uma nuvem de nicotina – e de um humor refinado e subtil, esconde-se um ser contemplativo, alguém que adora filosofia, xadrez e respira poesia. Não foge a um bom combate, apesar de não ser um tipo dado à violência. Aliás, consegue normalmente acabar surrado por polícias ou insultado verbal ou fisicamente por mulheres, quase sempre fatais, que não o conseguem enganar mesmo usando apenas uma lingerie provocadora sobre um corpo de formas esculturais. No grande ecrã foi representado por Humphrey Boggart, que representou como ninguém o teria feito o detective imaginado por Chandler (e também pelos seus leitores). Com Philip Marlowe, Raymond Chandler deu-nos o novo herói norte-americano: cerebral, cavalheiro, cínico, sentimental e rebelde. E, com isso, acabou não só por reinventar o romance policial, mas a própria forma de se escrever ficção.

A Janela Alta, Raymond Chandler, Deus Me Livro, Livros do Brasil, Crítica“A Janela Alta” (Livros do Brasil, 2021), um dos últimos títulos publicados na renovada Coleção Vampiro, é um exemplo do magistral jogo de cintura de Chandler no que toca ao encanto literário. Logo na primeira página, descrevendo a sua ida a uma casa na Dresden Avenue, no bairro de Oak Knoll de Pasadena, Marlowe trata de criar a atmosfera: “Tudo o que sabia sobre as pessoas de lá era que eram uma Mrs. Elizabeth Bright e família e que ela queria contratar um detective privado honesto, que não deixasse cair cinza de charuto no chão e nunca andasse com mais do que uma arma. E sabia que era viúva de um velho tonto com suíças chamado Jasper Murdoch, que tinha feito uma data de massa a ajudar a comunidade, e que tinha a fotografia no jornal de Pasadena todos os anos pelo seu aniversário, com as datas do nascimento e da morte por baixo e a legenda: «A Sua Vida Foi Servir»”.

A missão entregue a Chandler é a de encontrar uma valiosa moeda de ouro roubada, que parece transportar consigo alguma maldição. Com outro detective privado à mistura e a polícia de Los Angeles (sempre) à perna, Marlow tem mais um quebra-cabeças entre mãos. Pelo caminho, descobrimos uma definição alternativa do que é a lei – “uma questão de dar e receber” -, assistimos a vários momentos de stand-up comedy poético – “Foi um belo arroto, leve, sem nada de exibicionista, e dado com uma indiferença fácil” -, sentimos o pulsar da veia decorativa-espacial de Marlowe – “A sala era grande, quadrada, sombria e fresca e tinha a atmosfera sossegada de uma capela funerária e um cheiro semelhante” – ou olhamos para os agentes da lei com olhos renovados – “A sala tinha aquele cheiro vago e insensível, não muito sujo, não muito limpo, não muito humano, que salas como aquela sempre têm. Entreguem à Polícia um edifício novinho em folha e passados três meses todas as salas cheiram assim. Deve haver qualquer coisa de simbólico nisso. Um repórter criminal de Nova Iorque escreveu uma vez que quando passamos para lá das luzes verdes de uma esquadra da Polícia saímos por completo deste mundo para entrarmos num lugar para além da lei”. Porém, por muito difícil que as coisas se mostrem, Philip Marlow arranja sempre uma forma airosa de sair de cena: “Voltei-lhe as costas, dirigi-me para a porta e saí. Fechei a porta com um estalido pequeno mas firma de fechadura. Uma saída bonita e calma, apesar de toda a sordidez”. Volte sempre, Mr. Marlowe.

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Pedro Miguel Silva

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