É um dos mais conhecidos episódios da história legal britânica, um daqueles inesperados momentos em que a literatura e a arte são chamadas a depor no banco nos réus – e tudo por culpa de um senhor chamado Oscar Wilde. Um verdadeiro artista – em todos os sentidos – que, mentindo com todos os dentes, elevou o estatuto e o papel da arte, criadora por excelência de beleza e emoção.
A razão para Wilde se sentar no banco de réus, quando o calendário lunar assinalava a data de 3 de Abril de 1895, prendeu-se com a sua alegada relação com o jovem Alfred Douglas, filho do Marquês de Queensberry, Alfred que era 16 anos mais novo que Wilde. Idade que, aqui, nem era de grande importância, face ao facto de a Homossexualidade ser considerada, perante a lei vitoriana da época, um crime e dos grandes – punido com dois anos de prisão e trabalhos forçados.
Quando, a 14 de Fevereiro de 1895, decorria a estreia triunfal de “A Importância de se Chamar Ernesto”, e vendo-se impedido de entrar na sala de espectáculos – onde, segundo reza a história popular, teria levado um cabaz de tomates fora da validade -, Queensberry deixou um cartão num clube do qual Wilde e a mulher eram membros, no qual havia escrito o seguinte (o erro foi propositado): «Para Oscar Wilde, com pose de somdomita».
Contra o conselho de muito boa gente, Wilde decidiu acusar o Marquês de difamação, tendo assim entrado no tribunal na qualidade do autor da acusação. Porém, face ao “inclemente número de factos que a prosaica realidade ia derramando em tribunal”, passou rapidamente do papel de acusador para acusado. O Marquês saiu em ombros e Wilde foi, na ressaca judicial, chamado para uma dupla de julgamentos: não-culpado no primeiro e culpado no segundo, condenado e sentenciado à prisão e a trabalhos forçados – período no qual aproveitou para escrever uma belíssima carta de desamor, com mais de 150 páginas, onde olhou para lá do ideal grego que viu em Douglas e esmiuçou a relação – e em parte a si próprio – à lupa, com muito desencanto e amargura – “A minha submissão aos teus pedidos foi prejudicial para ti. Sabe-lo agora. Tornou-te muitas vezes ávido, por vezes até sem escrúpulos e sempre desagradável”. Mas, também, colocando-se no papel de artista-mártir: “Talvez eu fosse escolhido para te ensinar qualquer coisa de mais maravilhoso: o significado e a beleza do Sofrimento”.
“A Intransigente Defesa da Arte – transcrição de um julgamento sórdido” (Guerra & Paz, 2022), livro que se junta à colecção de Livros Negros da Guerra & Paz – onde moram já preciosidades como “Manual de Civilidade para Meninas”, de Piérre-Félix Louys; “O Solilóquio do Rei Leopoldo”, de Mark Twain; “Os Benefícios de Dar Peidos”, de Jonathan Swift -, publica a quase totalidade das transcrições do julgamento no qual Wilde se viu acusado. Um julgamento no qual se viu encostado à parede para assumir a sua homossexualidade, esquivando-se como pôde, com muito humor, sarcasmo e lábia, recusando a palavra “blasfémia” no seu dicionário particular, raramente considerando aquilo que escreve como verdadeiro, defendendo que tudo aquilo que estimula o raciocínio é válido e, mais do que tudo, defendendo a sua posição em relação à Literatura, que não deve procurar fazer o bem ou o mal mas, antes, “uma coisa que tenha alguma qualidade, alguma beleza”.
Apesar de ter sido, como lhe chama Mega-Ferreira em “Desamigados”, “arrogante, displicente, chistoso”, Wilde deu aqui uma das suas mais incríveis performances, proferindo um brilhante discurso que, na sua intransigente defesa da arte, se tornou uma mistura de documento histórico e diatribe literária.
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