“Ao longo da vida, todos os factos importantes e que nos perturbam não passam de repetição dos nossos pesadelos; tudo o que acontece já aconteceu, de tal modo que temos de sofrer a mesma dor um número incalculável de vezes.”
É impossível sabermos ao certo que pesadelos atormentavam o sueco Stig Dagerman (1923-1954), conduzindo-o ao suicídio aos 31 anos. Para trás ficou uma infância marcada pelo abandono da mãe, anos de intensa actividade na imprensa e nos meios anarquistas de Estocolmo, e um conjunto de obras, produzidas em apenas quatro anos, que o transformaram numa estrela da literatura escandinava.
Escrito no Verão de 1946, “A Ilha dos Condenados” (Antígona, 2022 – reedição) é um livro intrincado, estranho e assombroso, onde acompanhamos sete sobreviventes de um naufrágio, cinco homens e duas mulheres, retidos numa ilha hostil, povoada por animais bizarros e plantas venenosas, onde não encontram comida nem água potável. Com o fim das provisões que conseguiram recuperar do barco, ficam entregues aos aguilhões da fome e da sede, que todavia não os atormentam mais do que os traumas que guardam e as relações de poder e submissão em que se enredam. Toda a ilha é como uma floresta assombrada, mas os verdadeiros monstros acoitam-se no interior dos seres humanos.
A primeira parte do livro divide-se em sete capítulos, cada um centrado numa personagem e nos eventos que a conduziram à malograda viagem. A segunda e última parte une as peças soltas do puzzle cronológico e progride até à conclusão de todas as histórias, num ambiente de desespero onde o medo é comparado a uma chuva de cinzas que não pára de cair, ou a um gato que brinca com um ratinho.
A narrativa flui torrencialmente, deformando o tempo e o espaço, enquanto aborda os temas da culpa, da solidão e do confronto entre a obediência e o livre-arbítrio. Considerando que o texto foi escrito logo após a Segunda Guerra Mundial, talvez possamos reconhecer nele uma crítica à “maldade indiferente do mundo”, bem como ecos da desolação nuclear e do temor da extinção da Humanidade. Também importa notar que a maioria das personagens provém de um país fictício, a Velamésia, caracterizado por profundas desigualdades, confrontos sociais e cruéis abusos de poder, como se o autor pretendesse criar uma mitologia acerca de um local capaz de concentrar tudo o que considerava errado na sociedade.
A leitura nem sempre é fácil, pois as mentes das personagens cruzam a realidade com sonhos, alucinações e memórias, mas vale a pena apreciá-la devagar, não só para decifrar a obra, mas também para nos deixarmos deslumbrar pela escrita encantatória de Dagerman, sempre a oscilar entre o pesadelo e a beleza: “Com as mãos profundamente enterradas na areia, sai lentamente do gigantesco volume do sonho fechado com setenta selos, miserável pequeno grão encerrado no fundo do volume na mais pequena das cem caixas do sonho, e deita-se de costas a gemer, e fica com a boca muito aberta à espera da chuva sonhada”.
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