“A Filha do Comunista” (Porto Editora, 2020) é o romance de estreia de Aroa Moreno Durán, jovem escritora espanhola, nascida em Madrid em 1981, formada em jornalismo e especializada em informação internacional e países do Sul, o qual vem integrar uma trajectória de publicações de poesia e a autoria de biografias.
Para Katia, a jovem berlinense, nascida no seio de uma família espanhola que se fixara na República Democrática Alemã em fuga à ditadura espanhola, a culpa revelou-se uma térmita incansável, capaz de corroer e fazer sucumbir os alicerces de um grande amor e da própria liberdade. O pai chamara-lhe Katia porque era um nome russo, com pronúncia igual em russo, alemão e espanhol. Ainda assim, para Katia, o seu castigo parecia ser viver sem terra.
O pai em 1938 e a mãe em 1946. Ambos haviam abandonado Espanha em fuga à fome, em sentido literal e figurado, reunidos em Dresden depois da partida dos nazis, ajudados pelo partido e a viver em comunidade. A vontade de liberdade ditou a partida para Berlim Oriental, cidade onde nasceram as duas filhas do casal. Katia, a mais velha, iniciou então um longo processo de luta pela identidade e de afirmação como berlinense, gerindo a tendência para a rotulagem à nacionalidade dos pais, à filiação partidária e ao determinismo geopolítico que a coloca num dos lados da barricada, do muro que impos clivagens e acentuou a estigmatização.
“Vinte e sete anos depois da queda do muro de Berlim, existem no mundo mais de outros quinze com os quais se tenta impedir violentamente o fluxo de pessoas.”
Em 1971, procurando libertar-se dos grilhões de um regime que lhe condicionava a liberdade de ser e de descobrir outras formas de viver, outras formas de olhar o mundo e os outros, aceita a proposta do namorado, um jovem que vivia na RFA ou Alemanha Ocidental, a mais de 500 Km de Berlim, que lhe proporciona uma vida completamente diferente: sem muro, sem condicionantes ideológicas, sem limites em termos de expressão ideológica – mas, ainda assim, portadora de um status quo que a volta a aprisionar. A partir de então – e durante anos – vive num vértice estreito, como equilibrista, com medo de cair para qualquer um dos lados, corroída pela hesitação entre ficar ou regressar.
Com uma acção especialmente centrada e relatada no período de 1956 a 1992, há ainda no trabalho de Aroa Moreno Durán um ganho muito interessante: o retrato de Berlim no pós-guerra e nos momentos pré e pós muro. Para uma família que se sentia praticamente apátrida, começou por ser uma cidade destruída, depois uma cidade cindida e, por fim, uma cidade e um povo reunido.
“A Filha do Comunista” poderá ser destacado tanto pela narrativa cristalina e envolvente como pelo retrato histórico que comporta. O respeito pela subjectividade dos valores identitários de cada um é talvez a vertente que mais se realça, revelando a autora talento e sensibilidade na forma como aborda o tema, com audácia e sem ajuizamentos ou depuramentos. No final percebe-se que as escolhas ideológicas e políticas, a luta pela liberdade e pelo amor, comportam sempre custos, seja qual for o balanço final e a forma como se apresentem as contas a prestar internamente.
“A memória é a capacidade que permite reter e recordar factos passados: codificar, armazenar e recuperar. Move-se na inconsciência, como uma maré, trazendo à luz da noite o fundo de areia que está sob a água.”
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