Se este não tiver sido o mais incrível album de banda desenhada a ser publicado por cá em 2021, a verdade é que andará muito lá perto. Com argumento de Zidrou e arte de Frank Pé, “A Fera” (A Seita, 2021) é uma homenagem em grande formato a Marsupilami, o exótico e fabuloso animal criado por Franquin na série Spirou e Fantásio.
Por falar em Spirou e Fantásio, estamos perante um clássico intemporal da BD que, por cá, não tem tido a melhor das sortes. Comparemos. Astérix – e companheiro – não tem, se a memória não estiver a pregar partidas, um álbum em falta nas livrarias nacionais – e até teve direito a algumas edições em mirandês; Tintin está igualmente bem representado – aliás sempre o esteve, a sua revista em nome próprio foi por cá publicada, e não esqueçamos a recente dedicada a Hergé patente na Gulbenkian até dia 10 deste mês. E o que dizer de Lucky Luke que, para além dos títulos da série original, teve direito à edição da série do ainda aspirante Kid Lucky, além de uma outra onde desenhadores de hoje recriam, de forma livre, o cowboy que deixou de fumar? Pois bem, o mesmo não aconteceu com a série Spirou e Fantásio, que continua com diversos álbuns inéditos no nosso país assim como o spin-off (Uma Aventura de) Spirou e Fantásio, onde, em cada tomo, um autor – ou uma dupla de autores – presta homenagem à série. Façamos figas para que o cenário possa mudar nos próximos tempos.
Ao contrário de muitas outras homenagens, e apesar de ter tido pré-publicação num suplemento da revista Spirou, “A Fera” é um livro em nome próprio, não ligado a qualquer série já existente ou com um pé no universo Spirou. Aliás, Marsupilami está longe de ter aquele ar fofinho a que nos habituámos, um rosto do tráfego de animais exóticos ligado ao abuso e aos maus-tratos.
Tudo começa no porto de Antuérpia, Bélgica, numa noite chuvosa a que não faltam raios e coriscos. Estamos nos últimos dias de Novembro de 1955. É aí que, chegado de barco directamente de Palombia, um fictício país sul-americano que apenas pode ser descoberto no atlas Spirousiano, tomamos contacto com um estranho animal, descrito desta forma por Tillieux, marinheiro pouco zeloso para com a carga alheia: “O mais espantoso nele, é a cauda. Eu cá diria que um naturalista bêbado lhe colou uma mangueira de jardim no cu”. Palavras que se revelam um auto-epitáfio, uma vez que o Houba! que se ouve a seguir é, aqui, motivo para fazer arrepiar a espinha ao leitor.
Será em Antuérpia, numa escola que tem como director um tipo que detesta os livros de Spirou, aulas de poesia, os filmes de Charlot e as piadas de Laurel e Hardy, que iremos conhecer o fora da caixa professor Boniface – ou Sr. Boniface -, de quem os pais não gostam assim tanto por não dar notas aos filhos. A única excepção parece ser “Miss” Van den Bosch, de quem as pares linguarudas dizem estar “sempre ao lado dos ocupantes”. A grande estrela dá pelo nome de François, filho de den Bosch, olhado de lado pelos companheiros de escola que o chama de boche, e que lhe oferecem pedaços de pano com suásticas dizendo tratar-se da sua certidão de nascimento.
François é um amigo dos animais em apuros, um Noé reinventado e dono de um zoo que a mãe apresenta desta forma exaltada: “Uma toupeira albina! Uma coruja surda! Uma codorniz depenada! Um gato velho que se peida o tempo todo! Salamandras! Um cão com três patas! O único morcego diurno do mundo! Uma águia que nem consegue voar! Um porco-espinho cobarde! Um peru que acha que é um galo! Uma cobra senil! Uma lebre meio paralítica! Um cavalo alcoólico! Um casal de castores permanentemente com o cio…! Só falta um unicórnio para a nossa arca de noé ficar completa!!”. Porém, como diz a sabedoria popular, há sempre lugar para mais um.
Servido num álbum de grande formato, em papel grosso embrulhado em capa dura, “A Fera” é uma verdadeira experiência visual e uma festa sensorial de arromba, um bem impresso cartão-de-visita ao espanto que é a banda desenhada franco-belga. Sejam ou não fãs de Spirou, este é um álbum obrigatório. E o melhor de tudo é que vamos ter continuação.
Zidrou, de seu nome verdadeiro Benoît Drousie, é um dos mais prolíficos e talentosos argumentistas de BD de língua francesa das últimas décadas. Nascido em 1962 em Anderlecht (na região de Bruxelas), trabalhou como professor durante seis anos. O seu primeiro argumento publicado saiu no número de Natal de 1991 da revista Spirou, com ilustrações de De Brab. A partir daí tornou-se rapidamente num dos pilares da revista, escrevendo histórias para dezenas de desenhadores. A sua imensa produção para a revista Spirou não o impediu de colaborar com a editora Le Lombard, para quem criou, com Godi, a série “As Lições do Toninho / O Menino Boavida (L’Elève Ducobu)”, que foi um dos seus maiores sucessos comerciais, e de recuperar, para uma nova geração de leitores, séries clássicas como Ric Hochet e Clifton. Além desta produção mais comercial, Zidrou é também responsável por uma produção mais autoral, normalmente em colaboração com autores de Espanha, país onde reside, que inclui séries como o premiado “Verões Felizes”, ilustrado por Jordi Lafebre, que por cá tem sido editado pela Arte de Autor.
Frank Pé nasceu em 1956 em Bruxelas. Antes de ingressar na École Saint-Luc (célebre escola de BD belga), onde foi colega de outros grandes nomes como Schuiten ou Yslaire, Pé começou a publicar na revista Spirou, com apenas 17 anos. É aí que publica a sua primeira grande série, Brousaille, com argumento de Michel de Bom, onde já era patente o seu amor pela natureza e pelos animais, elementos desenvolvidos na série Zoo, com argumento de Philippe Bonifay. Depois de concretizar um sonho de infância, desenhando um livro de Spirou, “La Lumière de Bornéo”, com argumento de Zidrou, os autores regressaram ao universo de Franquin com “A Fera”, o primeiro livro de Pé publicado em Portugal.
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