Para ficar absolutamente dependente do mais recente livro do sueco Jonas Karlsson, “A factura” (Alfaguara, 2016), basta lançar, ainda que de relance, um olhar à sinopse do livro: “5.700.000 coroas suecas. 600.00 euros. Era esse o valor da factura que o nosso narrador recebeu um dia na caixa de correio. O nome na factura era o dele. A morada também. Mas o que poderia justificar uma soma tão astronómica? Bom… a vida. A vida de um homem modesto, cinéfilo, trabalhador em part-time num clube de vídeo, com um punhado de amigos, um pequeno apartamento soalheiro em Estocolmo e um coração partido, que se contenta com pouco e que tira grande prazer dos pequenos nadas que a vida lhe vai… oferecendo? Bem, aparentemente, nada é de borla. Tudo tem um preço, e o nosso narrador vai descobri-lo da pior forma possível.”
Neste romance, Jonas Karlsson retrata algo excepcional e surreal, apresentado como simples e do quotidiano, ao verdadeiro estilo Kafkiano. De forma impactante, trata o absurdo que foge do real e do ponderável como se fosse algo banal, que ocorresse com todos: “Tanta surpresa porquê? Não lia jornais, via televisão ou ouvia rádio? Não tinha um sistema de pagamento previsto? Não fez um plano de pagamento? Não se registou?” São questões com as quais o protagonista se depara, ficando com a impressão de que, enquanto a situação perdura, vive numa dimensão irreal, em estado de perplexidade. Todos haviam recebido uma factura, em montante diferente, que aceitaram e procuram agora a todo custo pagar, se necessário alienando bens ou endividando-se. Mas a que se deve e como é calculado aquele montante? Será possível contestá-lo ou, pelo menos, diminui-lo?
Nesta procura de explicações, o protagonista cruza-se com Maud, a voz feminina que responde do outro lado de uma linha telefónica onde procurara informações e que está sempre lá, com todo o tipo de informação sobre a sua vida, as suas experiências, até as respostas aos vários questionários que ao longo dos anos respondera de forma displicente, pensando tratar-se apenas de mais uma sondagem ou um inquérito de opinião. O ingrediente romance está lá, semeado de forma subtil. Igualmente presente, com ganho informativo, sugestões cinéfilas, ou não fosse o protagonista trabalhador num clube de vídeo.
Se, como já foi referido, a associação deste romance ao estilo Kafkiano é concebível, não podemos ainda assim deixar de assinalar a auto-suficiência do protagonista. De forma sublimar, Jonas Karlsson põe-nos em contato com alguém que acredita que a vida não é uma linha recta. Alguém que parece aceitar os obstáculos e imponderáveis da vida, encarando-os como inevitáveis, diminuindo desta forma a dor emocional que lhe poderia estar associada caso adoptasse uma postura diferente.
A mensagem parece ser de aceitação, sem que tal signifique baixar os braços perante os acontecimentos. Nada disso. Aceitação apresentada como o encarar a realidade dos factos e a forma como eles acontecem. A ideia segundo a qual desejar uma vida completamente estável, sem mudanças e imponderáveis, sem desafios e experiências significativas, é a antítese da própria vida: “As pessoas são extremamente infelizes. A maior parte das pessoas sentem-se mesmo mal! Estão a sofrer. São pobres. Doentes, tomam medicamentos, estão deprimidas, assustadas, preocupadas com todo o tipo de coisas. Estão stressadas e em pânico, sentem-se culpadas, sofrem de ansiedade, não conseguem dormir, são incapazes de se concentrar ou estão simplesmente aborrecidas, constantemente sob pressão ou sentem que as tratam muito mal. Desiludidas, falhadas, culpadas…”
O processo é de confronto com a capacidade que cada indivíduo tem e que advém da sua aptidão de efectuar escolhas e acreditar em resultados positivos. Determinismo ou existencialismo? O desafio de perspectivas existe sendo que, provavelmente, encontraremos um pouco de ambas numa ocorrência aparentemente real, sentida como incompreensível e até bizarra.
Os ingredientes indispensáveis para uma boa leitura são evidentes: um foco narrativo que não se restringe apenas ao verosímil, que prende e faz pensar, mantendo acesa a centelha da leitura até à última frase.
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