Quem diria que, ao chegar à dúzia perfeita com alguns ovos rachados mas nunca partidos, Jo Nesbo brindaria os leitores com aquele que é, talvez a par de “A Estrela do Diabo” e “O Boneco de Neve”, o melhor livro protagonizado pelo inspector Harry Hole?
Harry Hole tem, como o tem provado o tempo e os muitos desvios tomados, um feitio – e dos maus. É o que se costuma chamar de “canhão à solta” (loose cannon no original), com poucos amigos e métodos pouco ortodoxos que, quase sempre, geram uma repreensão por parte dos superiores hierárquicos, que tentam seguir os procedimentos à risca para não perderem o lugar na escala. Dito de outra forma, Hole é uma espécie de Philip Marlowe (o mítico detective criado por Raymond Chandler) moderno, alcoólico por vocação e desespero, fumador compulsivo, um tipo que não pode criar raízes sob pena de magoar aqueles que ama – e as tentativas não foram poucas.
Harry ficou conhecido por ter apanhado um serial killer na Austrália, e é um dos poucos membros da equipa de investigação que recebeu treinamento do FBI, algo que fez dele o maior investigador da Noruega. Chegados a este 12º volume, intitulado “A Faca” (Dom Quixote, 2020), Harry Hole está de regresso ao seu território mais familiar: a ruína. Rakel deixou-o de vez, tem uma prótese de titânio num dos dedos médios – a que chama de “garra ávida” – e o gargalo voltou a ser o seu melhor amigo. A polícia de Oslo oferece-se para lhe dar uma nova oportunidade, mas apenas lhe entrega casos menores e uma vida administrativa, mesmo que a vontade de Harry Hole seja a de investigar Svein Finne que, depois de mais de uma década na prisão – posto atrás das grades por Hole por violação e assassinato -, é agora um homem livre e pronto para a vingança. Porém, “um alcoólico sedento com um salário fixo e uma conta bancária desfalcada, não se podia dar ao luxo de ser caprichoso”.
Quando, depois de uma noite bem bebida e totalmente esquecida, Harry acorda com os “nós dos dedos a sangrar, a pele raspada e sangue coagulado nos bordos das feridas”, sabe que poderá estar metido num grande sarilho, algo que parece confirmar-se depois de uma sessão de hipnose. Será tempo de regressar ao passado e, de uma assentada, enfrentar Svein Finne, “o noivo”, que forçava as mulheres que violava a dar à luz, mas também Kaja, a mulher que deixou quando apareceu Rakel.
Com uma banda sonora onde habitam nomes como The Clash, Ramones, Motorhead, Deep Purple, Bruce Sprongsteen, Kendrick Lamar, Prince, Marvin Gaye, ou Chick Corea, Jo Nesbo oferece mais um quebra-cabeças literário capaz de levar o leitor mais dado a adivinhações à loucura, esse “lugar solitário em que damos a nós próprios as respostas que pretendemos. E todos já tivemos esse diálogo”. Um dos grandes policiais de 2020 com edição nacional.
Sem Comentários