• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
A Distância Entre Mim e a Cerejeira, Nuvem de Tinta, Deus Me Livro, Paola Peretti
Mil Folhas 0

“A Distância Entre Mim e a Cerejeira” | Paola Peretti

Por Lalma Domus · Em 12/02/2019

Em “A Distância Entre Mim e a Cerejeira” (Nuvem de Tinta, 2018) olhamos, sentimos, cheiramos, ouvimos e pensamos por Mafalda, de nove anos, que sofre de uma doença macular degenerativa e está condenada a uma cegueira irreversível. Todas as crianças têm medo do escuro, e Mafalda sabe que a escuridão para ela será eterna (“(…) para mim o escuro é uma venda nos olhos que se pôs por brincadeira e já não se pode tirar”). Os passos (“Sei lá, não sei… Deve medir mais ou menos meio metro”) que separam Mafalda da cerejeira, são também os que separam Mafalda do encegueirar para sempre.

Paola Peretti vive em Itália, na cidade de Verona. Estudou Literatura e Filosofia e especializou-se em edição e jornalismo em 2011. Mais tarde, estudou Escrita Criativa na Escola Palomar, em Rovigo. Ao longo dos seus anos de estudo, trabalhou como empregada de mesa, barista, babysitter e professora, ao mesmo tempo que escrevia artigos para o jornal da sua região. Este romance de leitura fácil, o primeiro da autora, é uma catarse para a mesma: uma autobiografia fundada na experiência com o patentear da doença genética de Stargardt, causadora de perda progressiva da visão até à completude da cegueira. “Algumas notícias deviam vir sempre acompanhadas de um gato para abraçar”.

O romance tem uma fachada de simplicidade, num quase contrassenso com a seriedade da temática abordada de uma perspectiva profundamente alegórica. Tudo são pensamentos adoráveis (“(…)a minha pequena chama, a que tenho dentro dos olhos, está a apagar-se muito depressa.”), pontos de vista amorosos (“Oiço os saltos da mãe que se aproxima. Usa sempre saltos altos quando vai ao médico.”) e atitudes “fofinhas” (“Se bem entendi, para ter um filho tenho de dizer ao pai dele que o amo. (…). Portanto, basta que nunca diga a ninguém que o amo.”). Também o inglês é apresentado para os pequeninos: “xerlocolms” para os detectives, “vangog” ou “bitols” para as artes e ”ailoviú” para a vida.

Por estarmos perante um narrador autodiegético, este é um livro de uma criança para crianças. Esta inevitável “ingenuidade” que parte da natural imaturidade da personagem principal parece indiciar a uma observação sem “filtros” do problema: tudo é cru. Não queremos cá gente crescida – “Por isso, ficamos em silêncio no meu quarto até os adultos nos virem chamar e, como sempre, estragarem tudo, até os choros que não fazem barulho.” No entanto, este facto é apenas ilusório, porque esta é uma história para todas as idades- um paralelo inesperado por entre o fio narrativo dá asas à possibilidade mais vincada de cobrir todas as gerações com o raconto.

A Distância Entre Mim e a Cerejeira, Nuvem de Tinta, Deus Me Livro, Paola PerettiMuitos personagens entram nesta dinâmica existencial, sustentando o teor apresentado: crianças que simbolizam a candura e malvadez impensada, o fofo pequeno Filippo que sabe dar carinho (há sempre uma luz acesa), os pais, Dr.ª Olga e Estella, contínua na escola e a sua magia que perpassa todas as páginas desta obra. Os adultos são caracterizados com excelente aprumo, onde o panorama que nos é empratado é extremamente equilibrado. Por um lado, temos os pais que tomam o problema de Mafalda como deles também, isto é, a dor é de todos e o “problema” é um hábito irreversível- a pequena é tratada como um cristal, mas um cristal com cara de doença e não com alma de ser-humano. Por outro lado, temos Estella que, como não põe o problema em si, se distancia o suficiente para ser a luminescência figurada (“Talvez seja por isso que volto sempre para o pé dela: porque não finge que nada aconteceu.”). Na verdade, tudo o que amamos acaba por estar num mesmo fragmento do coração (“A ideia de Estella e Filippo estarem ligados por algo que tem a ver comigo agrada-me muito.”).

Impregnados na perspectiva de Mafalda (porque afogados em empatia), precisamos de saber quem é Marco Mengoni que Estella cantarola (“Pelo olho mágico sinto que começa a cantar uma canção de Marco Mengoni.”). Apesar de não apreciarmos (indomável fragilidade da subjectividade), agradecemos a oportunidade de um contexto musical.

O Principezinho é uma obra que irrefutavelmente enche vidas – o mundo é embebido em Saint-Exupéry. Mafalda, que acompanhamos, similarmente imerge na sua intemporalidade. De entre os vários indícios de cunho moral, há uma lição que retiramos de coração quente de “A Distância Entre Mim e a Cerejeira”, baseada no rapazinho que viaja por vários planetas: “Encontra a tua rosa, Mafalda. O teu essencial. Uma coisa que possas fazer mesmo sem ver.” Independentemente da condição social, conjunção psicológica, circunstância circundante, cenário biológico ou contexto temporal, esta é uma prédica que deveria ser universal. “Correr às escuras mete nojo.”, mas “Quem tem medo não vive, Mafalda”. Mafaldinha procura segurança (simbolizado pela cerejeira), mas percebe que a força está dentro, sem necessidade de um escudo-protector extrínseco, quasi-superficial.

Pecando por uma ligeira falta de originalidade a nível estilístico, teórico e de significado transmissor, compensa com a doçura do enredo. Todos os fragmentos recheados de caracteres são repletos de metáforas para a esperança, para a superação e para o medo: explicado para crianças, mas difundido para qualquer humano. Tudo é cegueira e cerejeira. Uma mensagem delicada de inspiração, que funciona, paradoxalmente, como um abrir de olhos para o leitor.

Aconselha-se a leitura de “A Distância Entre Mim e a Cerejeira” a quem tem medo de não ser forte, a quem não confia no ultrapassar solarengo de um problema e a quem quer ter ânimo suficiente para propagar a um querido desanimado.

[themoneytizer id=”19113-3″]

 

A Distância Entre Mim e a CerejeiraDeus Me LivroNuvem de TintaPaola Peretti

Lalma Domus

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
  • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

    “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

    30/04/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto