Em “A Distância Entre Mim e a Cerejeira” (Nuvem de Tinta, 2018) olhamos, sentimos, cheiramos, ouvimos e pensamos por Mafalda, de nove anos, que sofre de uma doença macular degenerativa e está condenada a uma cegueira irreversível. Todas as crianças têm medo do escuro, e Mafalda sabe que a escuridão para ela será eterna (“(…) para mim o escuro é uma venda nos olhos que se pôs por brincadeira e já não se pode tirar”). Os passos (“Sei lá, não sei… Deve medir mais ou menos meio metro”) que separam Mafalda da cerejeira, são também os que separam Mafalda do encegueirar para sempre.
Paola Peretti vive em Itália, na cidade de Verona. Estudou Literatura e Filosofia e especializou-se em edição e jornalismo em 2011. Mais tarde, estudou Escrita Criativa na Escola Palomar, em Rovigo. Ao longo dos seus anos de estudo, trabalhou como empregada de mesa, barista, babysitter e professora, ao mesmo tempo que escrevia artigos para o jornal da sua região. Este romance de leitura fácil, o primeiro da autora, é uma catarse para a mesma: uma autobiografia fundada na experiência com o patentear da doença genética de Stargardt, causadora de perda progressiva da visão até à completude da cegueira. “Algumas notícias deviam vir sempre acompanhadas de um gato para abraçar”.
O romance tem uma fachada de simplicidade, num quase contrassenso com a seriedade da temática abordada de uma perspectiva profundamente alegórica. Tudo são pensamentos adoráveis (“(…)a minha pequena chama, a que tenho dentro dos olhos, está a apagar-se muito depressa.”), pontos de vista amorosos (“Oiço os saltos da mãe que se aproxima. Usa sempre saltos altos quando vai ao médico.”) e atitudes “fofinhas” (“Se bem entendi, para ter um filho tenho de dizer ao pai dele que o amo. (…). Portanto, basta que nunca diga a ninguém que o amo.”). Também o inglês é apresentado para os pequeninos: “xerlocolms” para os detectives, “vangog” ou “bitols” para as artes e ”ailoviú” para a vida.
Por estarmos perante um narrador autodiegético, este é um livro de uma criança para crianças. Esta inevitável “ingenuidade” que parte da natural imaturidade da personagem principal parece indiciar a uma observação sem “filtros” do problema: tudo é cru. Não queremos cá gente crescida – “Por isso, ficamos em silêncio no meu quarto até os adultos nos virem chamar e, como sempre, estragarem tudo, até os choros que não fazem barulho.” No entanto, este facto é apenas ilusório, porque esta é uma história para todas as idades- um paralelo inesperado por entre o fio narrativo dá asas à possibilidade mais vincada de cobrir todas as gerações com o raconto.
Muitos personagens entram nesta dinâmica existencial, sustentando o teor apresentado: crianças que simbolizam a candura e malvadez impensada, o fofo pequeno Filippo que sabe dar carinho (há sempre uma luz acesa), os pais, Dr.ª Olga e Estella, contínua na escola e a sua magia que perpassa todas as páginas desta obra. Os adultos são caracterizados com excelente aprumo, onde o panorama que nos é empratado é extremamente equilibrado. Por um lado, temos os pais que tomam o problema de Mafalda como deles também, isto é, a dor é de todos e o “problema” é um hábito irreversível- a pequena é tratada como um cristal, mas um cristal com cara de doença e não com alma de ser-humano. Por outro lado, temos Estella que, como não põe o problema em si, se distancia o suficiente para ser a luminescência figurada (“Talvez seja por isso que volto sempre para o pé dela: porque não finge que nada aconteceu.”). Na verdade, tudo o que amamos acaba por estar num mesmo fragmento do coração (“A ideia de Estella e Filippo estarem ligados por algo que tem a ver comigo agrada-me muito.”).
Impregnados na perspectiva de Mafalda (porque afogados em empatia), precisamos de saber quem é Marco Mengoni que Estella cantarola (“Pelo olho mágico sinto que começa a cantar uma canção de Marco Mengoni.”). Apesar de não apreciarmos (indomável fragilidade da subjectividade), agradecemos a oportunidade de um contexto musical.
O Principezinho é uma obra que irrefutavelmente enche vidas – o mundo é embebido em Saint-Exupéry. Mafalda, que acompanhamos, similarmente imerge na sua intemporalidade. De entre os vários indícios de cunho moral, há uma lição que retiramos de coração quente de “A Distância Entre Mim e a Cerejeira”, baseada no rapazinho que viaja por vários planetas: “Encontra a tua rosa, Mafalda. O teu essencial. Uma coisa que possas fazer mesmo sem ver.” Independentemente da condição social, conjunção psicológica, circunstância circundante, cenário biológico ou contexto temporal, esta é uma prédica que deveria ser universal. “Correr às escuras mete nojo.”, mas “Quem tem medo não vive, Mafalda”. Mafaldinha procura segurança (simbolizado pela cerejeira), mas percebe que a força está dentro, sem necessidade de um escudo-protector extrínseco, quasi-superficial.
Pecando por uma ligeira falta de originalidade a nível estilístico, teórico e de significado transmissor, compensa com a doçura do enredo. Todos os fragmentos recheados de caracteres são repletos de metáforas para a esperança, para a superação e para o medo: explicado para crianças, mas difundido para qualquer humano. Tudo é cegueira e cerejeira. Uma mensagem delicada de inspiração, que funciona, paradoxalmente, como um abrir de olhos para o leitor.
Aconselha-se a leitura de “A Distância Entre Mim e a Cerejeira” a quem tem medo de não ser forte, a quem não confia no ultrapassar solarengo de um problema e a quem quer ter ânimo suficiente para propagar a um querido desanimado.
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