Há prémios Nobel e prémios Nobel. São poucos os que fazem parte do lote constante de escolhas editoriais do mercado português e, por sua vez, representam uma ínfima, microscópica facção de autores publicados. Ainda assim, são quem mais tem assegurada uma longa vida editorial (evitemos os meandros da imortalidade dos grandes romancistas, um mito). O bom de ser um prémio Nobel da literatura é que, mais tarde ou mais cedo, é-se repescado, de modo a evitar essa armadilha injusta que é a obscuridade.
Seja quem tenha a iniciativa de fazer essa campanha pela memória – se editores, órgãos políticos ou a família dos autores -, tal interessa pouco ao leitor. O comum e bem aceite é saber-se que, com aquele pequeno destaque de capa – “Prémio Nobel da Literatura” -, temos algo, à priori, que assegura um trabalho magnânimo de escrita. É nestes moldes que chegam até nós, pela Cavalo de Ferro, algumas traduções directas do servo-croata Ivo Andrić. Entre elas está “A Crónica de Travnik” (Cavalo de Ferro, 2016 (reedição) – original de 1945), pouco mais de 7 anos após a primeira edição, nada menos que um colosso de quinhentas páginas munido de um rigor hercúleo, testemunho de mestria e da erudição do autor que nasceu na Bósnia em 1892.
O contexto histórico é o das campanhas militares de Napoleão “Bunaparte” (com cheirinho a oralidade), na frente de guerra contra vários estados europeus. Tão perto, mas marginal pelo credo, está o Império Otomano. É neste molde humano multi-étnico que os cônsules, com interesses de maior importância para os estados que representam – Jean Daville e von Mitterer -, coexistem em Travnik, capital bósnia, pela hierarquia governante otomana. Com um fosso abismal entre a elite e a plebe, a segunda um nulo sem História, Travnik, exemplo perfeito do contraste entre a civilização Ocidental e Oriental, oscila entre uma sociedade de hábitos primitivos (a “ralé”) e uma minoria erudita e influente, na sua maioria estrangeira. Travnik carece de uma identidade “pura” ou “superior”, ideologia tão preponderante para a era dos nacionalismos que haveria de dar os seus passos largos com o desmoronar do Antigo Regime. O objectivo de Andrić passa por essa ideia de transformação, terminando o romance com a queda de Napoleão e consequente declínio de uma sucessão de conquistas. Os tempos seriam outros, de Revoluções, quer de direitos sociais, quer de progressos tecnológicos fomentados pelo capitalismo.
Ainda que pautado por uma série de eventos históricos colaterais à estadia dos cônsules e demais personagens na órbita de Travnik, a “Crónica” é o arquétipo de romance histórico, precisamente por ser o que os outros, da mesma estirpe, raramente o são. Não nos perdemos em tramas rudimentares de amores e desamores, sendo que tudo na prosa de Andrić é funcional, visando uma reflexão sobre um fragmento de longa duração histórica. A captura da essência desse tempo, das mentalidades que espelham as decisões políticas, despreza qualquer enredo de digestão rápida. Não que temáticas corriqueiras tenham pouco espaço nas páginas da “Crónica”, mas não são exploradas de modo a ombrear gigantes – as preocupações de maior importância para a nata política em torno do teatro de guerra napoleónico, bem como os declives sócio-culturais que vivem os cônsules. É essa prosa viril, preocupada com, como se costuma dizer, assuntos verdadeiramente importantes; essa linguagem simples e directa, onde cada palavra serve a frase seguinte, que torna Ivo Andrić o melhor romancista daqueles que, provavelmente, nunca se ouviu falar – mas que surge mais na ribalta do que aqueles que são esquecidos.
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Maravilhoso!