Poucos livros alemães conseguiram a proeza de ser continuamente reimpressos desde a data da edição original até à actualidade. “A Criança que se Perdeu” (E-Primatur, 2023), primeiro romance da bailarina e actriz Rahel Sanzara (1894-1936), publicado primeiro em folhetim e depois em livro, no ano de 1926, é uma dessas raridades.
A base da narrativa é um crime real, cometido na Alemanha da segunda metade do século XIX, que facilmente poderia originar literatura sensacionalista, mas que a autora aborda a partir da análise das pulsões obscuras da mente humana. Com efeito, um dos pontos mais fortes da obra é a representação do mundo interior das personagens, de uma forma que demonstra conhecimento das teorias freudianas em voga na época.
A figura que acompanhamos do início ao fim do livro é Christian B., arrendatário de uma propriedade rural. Trabalhador diligente, patrão justo e chefe de família exemplar, não procura mais da vida do que “um património para os seus filhos que um dia lhes possibilitasse uma existência semelhante à dele e algum dinheiro de reserva para a velhice e a doença”. As trevas que o atormentam desde a infância são dissipadas por um casamento surpreendente e feliz com uma forasteira desvalida, a qual lhe dá um par de filhos e, mais tarde, uma filha cujo nascimento constitui a “apoteose” da felicidade paterna. Porém, neste recanto idílico reside um mal oculto capaz de desencadear a desgraça. Aos quatro anos, a encantadora pequena desperta estranhas emoções ao filho da ama, um jovem criado como igual aos dois descendentes rapazes do patrão. Quando a criança desaparece, o seu homicídio e a respectiva motivação sexual não são segredo para os leitores, mas a família sofrerá anos na ignorância do sucedido.
Para o pai, a existência perde o sentido: “Nas trevas do céu haviam-se dissipado os seus afectos, a obra das suas mãos, a sua felicidade, a sua vida”. Entre inúmeras buscas, viagens motivadas por alegados avistamentos da pequena, suspeitas de rapto por ciganos, investigações inconclusivas e longos inquéritos judiciários, Christian entrega o espírito à dor, esperando apenas pela morte para apaziguar-lhe o desespero. Todos à sua volta são afectados pela tragédia, a dinâmica familiar fica irreversivelmente transtornada, e a vida na herdade – cuja descrição rica em detalhes é outro aspecto merecedor de destaque – também nunca mais será a mesma. Todavia, a ausência de desejo de vingança por parte deste homem, ou mesmo de satisfação com uma eventual punição do criminoso, faz com que a história culmine numa reflexão sobre a capacidade humana de perdoar e as consequências do perdão.
Caracterizado como um dos primeiros romances psicológicos modernos, este texto tornou-se um êxito entre o público e a crítica, tendo sido distinguido com o Prémio Kleist 1926, que Sanzara recusou. Apesar da temática potencialmente chocante, foi sobretudo a sonoridade judaica do nome com o qual assinava que levou os nazis a lançar a obra à fogueira, desconhecendo que este era o pseudónimo de Johanna Bleschke. Felizmente, o livro resistiu e hoje podemos apreciá-lo numa tradução directa para português.
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