Alice Walker arriscou e distinguiu-se com aquilo que é considerada uma obra magistral. Encarada como uma das autoras americanas mais talentosas, Alice fez em “A Cor Púrpura” (Suma de Letras, 2018) muito mais do que contar a história de uma pobre rapariga vítima das circunstâncias: deu-lhe uma voz e pô-la a falar, ainda que não o entendesse, do feminismo, dos direitos humanos, da liberdade, da violência e do racismo.
“Tenho catorse anos. Eu sou eu sempre foi bem comportada. Talvez tu pode me da um sinal pra explicar que tá me acontecer.”
Celie encontra-se subitamente órfã de mãe e, numa tentativa de tentar perceber a sua realidade, escreve cartas a Deus, esperando que algo maior a consiga fazer compreender o seu meio e o seu fado. Estas cartas, escritas naquela que é considerada uma linguagem ingénua, coloquial e paupérrima, reflectem muito mais do que as questões que assolam a cabeça da protagonista: o seu quase analfabetismo é salvo e perdoado quando conhecemos a miséria em que vive e a prisão em que está enclausurada. Celie é, de facto, uma prisioneira na sua vida. Através da sua perspectiva, é possível compreender o estilo de vida de uma população pobre e com horizontes limitados, num período muito conturbado no qual o norte e o sul dos Estados Unidos (bem como o passado e o presente) vivem em constante disputa.
Este retrato tão honesto de uma realidade vítima de injustiças impossíveis de serem resolvidas no período de uma vida deu, até, origem a uma série de críticas à autora: foi acusada de racismo, por exemplo, pela escolha do tom com que escreveu o livro. Mas este trabalho foi, na verdade, executado na perfeição. Leiamos parte da nota da tradutora, Tânia Ganho, que ficou responsável pela tradução dificílima para português:
“O romance oscila, assim, entre dois níveis de linguagem muito diferentes, um pautado pelas marcas de oralidade da comunidade negra rural e pelos erros de quem teve pouca instrução primária, e o outro regido pelas normas rígidas da língua que é, neste contexto, assumidamente a língua do colonizador.”
Encontramos, assim, a vulnerabilidade do ser humano e muitas das suas fragilidades. As personagens gritam por direitos que não sabem que têm: o livre-arbítrio, a liberdade de expressão, a escolha do seu rumo. Nada disto interessa quando há uma subjugação tão intrínseca que se torna forma de vida. As próprias emoções se tornam difíceis de interpretar e, numa tentativa de entendimento, Celie vira-se para Deus e pede-lhe: explica-me, porque eu não sei. A autora afirmou que este é um livro teológico. Para quem não tem esta visão religiosa, este é um livro sobre um pedido de ajuda. Qualquer que seja a perspectiva, talvez seja consensual dizer-se que é uma história sobre esperança. Vejamos a adaptação cinematográfica de Steven Spielberg, um realizador que tem o dom de atribuir vida às histórias e realidade às personagens. A forma como Spielberg relata a vida de Celie transmite esta solidão incomensurável, esta sede por liberdade e esta vontade de viver, por mais fortes que sejam as cordas que prendem a protagonista.
Ainda que esta não saiba que está presa, é quando conhece Shug Avery que percebe quão grande o mundo é e quando pequeno é o seu. É maravilhoso quando isto acontece: as páginas enchem-se de alegria, o filme enche-se de música. E, mais tarde, entra Sofia em cena, uma das personagens femininas mais fortes e carismáticas da história da literatura norte-americana.
“A Sofia e a Shug não são como os homem, diz ele, mas tambem não são como as mulher.”
Vencedor de um Pulitzer e do National Book Award, “A Cor Púrpura” é muito mais do que um livro: é uma viagem.
Vejam aqui uma das melhores cenas da adaptação ao cinema:
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[…] Este retrato tão honesto de (continue a ler o artigo no Deus me Livro). […]