Se existisse, nas páginas impressas, algo semelhante a psicanálise literária, Rachel Cusk estaria certamente entre os seus maiores especialistas. Em “A Contraluz” (Quetzal, 2017), livro inaugural de uma trilogia, viajamos entre a exposição do eu – mesmo que ficcionado – e a radiografia de seres alheios, num retrato mordaz, humorístico e muito desafiante da condição humana – e, sobretudo, da forma como nos relacionamos emocionalmente perante a perda, o amor – e a sua falta – e a sempre complicada dinâmica familiar, de médio e longo alcance.
Uma mulher viaja para Atenas no Pico do Verão, um daqueles países onde o sol é dado por adquirido, para leccionar um curso de escrita. Logo no avião conhece um homem com os “maneirismos de um inglês” e o “coração de um grego“, que lhe conta sobre os seus casamentos falhados, fortunas perdidas e a convida a ligar depois de pousarem em solo grego. Mas esta é apenas a primeira vida que lhe chega às mãos, mãos que parecem servir de íman para uma sucessão de narrativas que compõem uma intrincada tapeçaria humana.
A prosa de Cusk é hipnótica e desafiante, num exercício de escrita que parece querer soltar-se do espartilho de quaisquer regras de etiqueta ou conduta literárias: “Acontecia que eu já não estava interessada na literatura como uma forma de arrogância ou mesmo de auto-definição“. Num certo momento, o leitor é também ele um aluno de um curso de escrita criativa, aprendendo a melhor forma de se apropriar do lado mais visível da realidade transformando-o em história. Mas será que essa transformação não será, apenas, um exercício de sanidade e de sobrevivência perante a banalidade da existência? Como quando, a partir da aparente fraca capacidade de observação de um dos seus alunos, a narradora reflecte sobre o quase canibalismo ficcional da amarga condição humana: “Ele próprio não reparara em nada no caminho para aqui: não costumava reparar nas coisas que não lhe diziam respeito, precisamente por essa razão, a de que ele via a nossa tendência para ficcionalizar as nossas experiências como alguma coisa decididamente perigosa, pois essa tendência leva-nos a acreditar que a vida humana tinha alguma espécie de propósito e que éramos mais importantes do que na realidade éramos“.
“A Contraluz” é um mergulho de cabeça nas entrelinhas da classe média, com altos índices de psicoterapia, onde Cusk descreve, de forma implacável e sempre com mais defeitos do que qualidades, as personagens com que (a narradora) se vai cruzando, como se fosse prudente manter uma certa distância de modo a preservar uma ínfima centelha de fascínio. “…à distância era um homem convencionalmente atraente, com as cores de areia próprias dos loiros, mas de perto havia qualquer coisa ligeiramente inquietante na sua aparência, como se tivesse sido formado a partir de elementos díspares, de modo que as diferentes partes da sua pessoa não encaixavam inteiramente umas com as outras.”
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Rachel Cusk irá estar presente na edição de 2017 do Lev – Literatura em Viagem, que se realiza entre os dias 12 e 14 de Maio em Matosinhos.
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