A partir de um princípio sempre presente de absorção do seu meio, William Faulkner considerava tudo, até o mínimo pormenor, essencial para a formação de um indivíduo – stricto sensu, de um escritor. O seu discernir empírico, a partir do imortalizado dom de contar histórias e na senda da tradição americana, fazem do prémio Nobel um caso singular e muito imitado na literatura moderna, pelo seu experimentalismo a partir de pressupostos simples.
Dessa singularidade advém o discorrer ao sabor da mente, em diálogo intimista com o leitor. Embora mais contido, dado a enredo e sóbrio que Joyce, é pautado por diversos lapsos intencionais e repetições que procuram uma oralidade verossímil, conseguida em plenitude pela tradução de Ana Maria Chaves. Se há proeza em “A Cidade” (Livros do Brasil, 2016) na sua versão portuguesa, é transpor com sucesso as vicissitudes do clã Snopes, através da perspectiva (muito apegada ao seu espaço linguístico) de três narradores – Charles Mallison, Gavin Stevens e V.K. Ratliff.
O sul-americano ainda se ressente da Guerra da Secessão, no corpo da pequena (mas maior que outras localidades) cidade de Jefferson, condado de Yoknapatawpha, povoação dada às bocas pequenas e em procura constante do seu lugar num mundo frenético: a electricidade mudou o quotidiano e os automóveis aceleram o compasso de espera de vidas que, ainda assim, têm por base as querelas amorosas e familiares, passados criminosos e disputas de bens.
Sobre esse contexto sócio-cultural, capturado pela memória através das vozes algo fraternas dos narradores, temos os ideais capitalistas a tornarem-se viscerais até nas populações mais isoladas dos E.U.A. O banco é o maior símbolo de confiança em quem se confia menos, e Faulkner é capaz de tornar uma disputa de bens desinteressante num reflexo da natureza humana, na forma como a ganância se manifesta e o direito à propriedade dá azo às mais inconsequentes decisões. De igual modo, a mudança de mentalidades que tanto busca o que conhece, como quer fazer a diferença, provoca uma combustão lenta a partir dos típicos casos de infidelidade que acompanham a caminhada ascendente do estatuto social; da moral implícita nas sempre complexas relações entre seres tímidos, fruto da vigente moral religiosa; e o firmar de laços familiares, tão vital para a estrutura social de entreajuda.
“A Cidade” é a segunda parte de uma trilogia que segue os Snopes, iniciada com “A Aldeia” e concluída com “A Mansão”, servindo de testemunho ao génio de Faulkner. Pode muito bem ser lida de forma isolada. Não será, contudo, a obra iniciática indiscutível, sendo que “A Cidade” é certamente mais discreta que, por exemplo, o arrebatador “O Som e a Fúria” ou “Luz em Agosto”. Mas com o autor em questão, diga-se, esse tipo de certo ou errado, esses tiros certeiros ou falhados, não existem.
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