“Todos os dias penso em Istambul. As pessoas devem estar agora a atravessar os pátios das mesquitas, sem saberem, sem verem. Preferem pensar que os edifícios que as rodeiam estão ali desde o tempo de Noé. Não estão. Nós é que os erguemos: muçulmanos, cristãos, artífices e escravos das galés, seres humanos e animais, dia após dia. Mas Istambul é uma cidade de esquecimentos fáceis. Ali, as coisas são escritas na água, exceto as obras do meu mestre, que foram escritas em pedra.”
Elif Shafak pode ser a escritora mais lida na Turquia mas, com o seu novo romance, arrisca-se a conquistar os leitores portugueses, fazendo-os apaixonar-se pela história e cultura do antigo Império Otomano. Em “A Cidade nos Confins do Céu” (Jacarandá, 2016) somos levados pela mão de Jaham a “perscrutar o coração de Istambul”, numa história peculiar sobre o amor – o amor pela aprendizagem e a aprendizagem do amor.
Jaham é um jovem indiano, que embarca para Istambul para entregar uma dádiva ao Sultão: Chota, um raro elefante branco com quem desenvolveu uma relação especial. Como os elefantes são “enormes não apenas em tamanho, mas também de coração”, rapidamente Chota assume um lugar de destaque na colecção de animais selvagens do palácio, conquistando a filha do Sultão e Sinan, o principal arquitecto real, de quem Jaham se torna aprendiz, subindo assim a pulso na corte.
Através do menino de nove anos, “sozinho numa terra estranha”, somos introduzidos nesta cidade de encontro de civilizações, onde convergem povos com diferentes religiões, hábitos e crenças, que deixarão bastante curiosos os leitores ocidentais, especialmente no que toca a superstições. A história segue num ritmo pausado, permitindo ao leitor absorver as informações históricas – porque é de um romance histórico que se trata – e, simultaneamente, deixar-se conquistar pelas personagens.
Jaham pode-se assumir como protagonista, mas Elif Shafak preenche o nosso imaginário com uma panóplia de personagens intimamente construídas, que sentimos vivas e com alma. Bem no centro de toda a narrativa está uma figura não ficcional: Sinan, o mais icónico arquitecto da era otomana que, ao longo de mais de 50 anos, serviu três sultões, construindo cerca de quatrocentos edifícios, entre os quais grandiosas mesquitas e parte da monumental Hagia Sophia. Sinan será o grande mentor, professor e mestre que ensinará e guiará Jaham, mudando o rumo da sua vida para sempre.
Para além de demonstrar uma incrível destreza em viver fora do seu tempo, ambientando-nos a deslumbrantes cenários do século XVI, a autora brinda-nos com uma prosa rica e elegante, que nos faz querer viajar de imediato para o Oriente. Para a autora, os pinheiros são “altos, como soldados de sentinela”; cada rumor “doce como açúcar caramelizado” e as insinuações “delicadas, como tufos de dentes-de-leão ao vento” – ao fazer acompanhar os adjectivos de comparações, Shafak cria descrições verdadeiramente imagéticas. A acção decorre diante dos nossos olhos, com altos e baixos, vitórias e derrotas, muitas intrigas, traições e segredos.
Durante a leitura somos invadidos por um rol de emoções, em profunda sintonia e envolvência com as personagens, porque sentimos empatia por elas, principalmente por Jaham, que acompanhamos desde criança em todas as vicissitudes da vida. Com ele vivemos uma ligação inquebrável com o elefante Chota, aprendemos a conjugar a sabedoria e a força e percebemos que “às vezes, para que a alma floresça, o coração tem de ser quebrado”. Através do rapaz que vem de uma aldeia “tão alta nas montanhas que dormiam acima das nuvens, alojados entre a terra e o céu”, a autora mistura arquitectura, arte e amor, numa intensa aura espiritual.
Ao longo de mais de 500 páginas, a história está repleta de lições e pequenos contos místicos, que agradarão sobretudo aos sonhadores e apaixonados pela cultura oriental. A par da beleza – não só da capa, que nos perdemos a contemplar – destaca-se a tolerância dos sábios que amam aprender: “os homens ignorantes pensam que estamos aqui para lutar, fazer guerras, acasalar e ter filhos. Não, o nosso trabalho é expandir o nosso conhecimento. É por isso que estamos aqui.”
Numa mistura entre aventura, romance, suspense e espiritualidade, “A Cidade nos Confins do Céu” vai exercer um profundo fascínio sobre o Império Otomano, encarnando vivamente a grandeza da cidade de Istambul e da sua população. Num doce equilíbrio entre história e ficção, com apaixonantes personagens imaginadas – como Jaham e Chota – e referências históricas ímpares – como Miguel Ângelo, Dante e Sinan -, este é um livro que facilmente cumprirá o desejo da autora: “fluir como água no coração dos seus leitores.”
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