“Nunca se casaram. Talvez por não haver na aldeia noivos da mesma condição dos irmãos. Conta-se que a mais velha teria gostado de um rapaz dali, que a ela se chegara, mas tinha interrompido a voz do coração e feito com a irmã um acordo para a vida. Prometeram as duas ficar sós e amparadas uma à outra, a gastar os dias naquele lugar parado e seco, com pouco mundo para além da gestão do azeite e das uvas, dos bordados e das missas. Assim lá estavam as duas na grande casa escura com as portadas das janelas fechadas para tolher o sol, o calor feroz e as muitas moscas.”
Uma casa rural com cem anos, herdada inesperadamente por M., dá o mote para o romance “A Casa Das Tias” (Teorema, 2017), escrito por uma autora com um apurado conhecimento do português e da forma clássica de o escrever, um extraordinário talento narrativo, uma atenção ao detalhe e senhora de uma escrita madura, suave e serena, com enorme rigor sintáctico.
Esta casa das tias – avós solteiras de M. -, há muito fechada, e M. que esta visita na companhia de uma velha amiga, é uma importante personagem, a par de Francisca e Teresinha (as tias), que sempre residiram na casa, e seus irmãos, a trabalhar e a viver em Lisboa ou Porto. Quanto a Constantim, é a aldeia beirã onde se situa o lugar da casa das tias, ”aprumada, pura, a resistir à vida”.
Sem qualquer necessidade de um desenvolvimento cronológico, tão comum à estrutura de um romance, a autora escreve uma história que aglutina fragmentos em curtos e bem definidos capítulos. Estes convocam, sempre de forma contida, tanto momentos trágicos como momentos excepcionais e, ainda, momentos escuros e tristes, de uma frustração mansa e surda, entrecortados pelas missas.
As tias surgem confinadas à aldeia e com uma missão de vida feita de renúncias silenciosas, que agora acolhem e hospedam de acordo com a tradicional educação dada às meninas-de- família, de “aprender a coser, a cozinhar, a consertar, a ser benévola, a não desperdiçar o tempo, (…) a amar as crianças, a respeitar a velhice, a conservar a casa em boa ordem, a dominar o génio, a desprezar as bisbilhotices, a tornar um lar feliz, a cuidar dos doentes, a desposar um homem pelo seu valor moral,(…) a ser uma verdadeira mulher em todas as circunstâncias”.
Quando incide particularmente sobre o quotidiano das tias – “na vida escura das tias” -, apenas intervalado pelas curtas estadas (vazias) em Lisboa, ou nas visitas (médicas) ao Porto, onde vivem os irmãos, o romance é nitidamente melancólico e até pungente, iinserido na época do Estado Novo e retratando, com minúcia, os comportamentos e hábitos sociais então consentidos, a cultura e a educação então permitidas, a assunção então imposta da religiosidade pessoal, os bons costumes obrigatórios e as relações consideradas convenientes entre classes sociais.
A história incide igualmente na vida dos irmãos das tias, em aspectos das suas vidas pessoais e das suas profissões, onde também existe renúncia: “Tratar da irmã doente é um destino que acata numa abnegação admirável. Torna-se de novo o filho da casa distante, prende-se de novo à família, responsável, decisor, consultor, beneficente – agora um pai”.
Como pequenos pedaços de uma fotografia de família, família com uma realidade multifacetada, assim é construído este romance com breves incursões ao universo pessoal/íntimo de cada um, e breves descrições dos dias na aldeia e na cidade. Há capítulos notáveis, pelo recorte humano e angustiado das tias solteiras, “cingidas à aldeia, (…) sem amores privados e na sua condição infecunda”.
A história é contada com mestria no recorte das personagens e num português muito enriquecido, que deleita. O leitor vai saborear e reler frases, de refinado cunho clássico como “Teresinha era mais pausada e doce, uma cara quase circular dentro de um cabelinho liso e claro, preso por um gancho no lado da cabeça, delicadas as mãos, quase infantil o corpo; (…) a frieza elegante dos seus braços, a proteger como um casulo aberto o frágil corpo dela; (…) outro mês passaria em ânsia de a ver (…), nunca vendo dele os olhos suplicantes”.
Cristina Almeida Serôdio apresenta um fascinante documento, que retrata uma época e os seus comportamentos sociais e familiares e acrescenta, também, uma avaliação de cariz psicológico/filosófico do íntimo das pessoas vergadas às convenções sociais vigentes. “Nas ruas de Lisboa não há a saudação sagrada das vizinhas ou dos que passam e tiram com mesuras o chapéu às meninas, curvando-se um pouco e desejando uma boa tarde ou um bom dia seguro e certo”.
“A Casa das Tias” é um testemunho histórico muito importante das famílias convencionais do Estado Novo, deixando no leitor um travo amargo ao aperceber-se dos sentimentos que ficaram embutidos e silenciados na imensa renúncia das tias. Sobretudo para Teresinha, que teve um pretendente e “atou ao coração um peso de ferro”, quando o recusou. “Ficou assim o amor por ser provado. Para Teresinha, o amor dias não tem, que todo é noite. O futuro mudamente a não ser novo, a ser como os dias de sempre, ela a ser quem como sempre foi. A outra, inaudível, morta”.
Última palavra para o ineditismo da narrativa, supostamente encomendada por M. a esta sua amiga (que com ela visita a casa), pessoa terceira à família de Constantim, que habilmente recose e reconstrói, de forma verosímil, a história familiar a partir do que ouve e vê e sente.
1 Commentário
Cristina bem podia ter posto o nome real da aldeia onde a estória se desenrola e que nós que conhecemos a Cristina e a aldeia sabemos que ela se refere a duas tias de sua Mãe a que todos nós crianças ou adultos chamava-mos Meninas… porque era assim que se tratavam as senhoras que nunca se casaram