No longínquo ano de 2012, a Quetzal publicava um dos livros mais assustadores e recomendáveis do ano – talvez mesmo da década -, que aliava a essência do thriller nórdico a um apetite voraz pelo sobrenatural. Falamos de “Lembro-me de ti”, de Yrsa Sigurdardóttir, que fez com que muito bom leitor tivesse dificuldade em viajar entre a sala e o quarto, isto se lesse o livro sozinho e a más horas. Depois deste calafrio seguiram-se várias outras obras, mas aquela sensação de arrepio nunca havia regressado por inteiro.
“A Boneca” (Quetzal, 2023), livro de 2018 que chegou às livrarias nacionais este ano, volta a casar o thriller com o sobrenatural e, mesmo sem nos conduzir até uma ilha inóspita e habitada por fantasmas, traz-nos uma boneca que poderia bem ser prima do Chuckie, essa figura mítica do terror de brincar (mas que assusta).
Num passeio com o ar de encontro amoroso a bordo de um barco de pesca, envolvendo um casal em potência e a filha de uma das partes, uma boneca aparece na rede de pesca. “A boneca, que tinha manifestamente passado muito tempo dentro de água, estava coberta de crustáceos, vermes brancos e outros organismos impossíveis de identificar. Tinha um delicado fio de metal à volta do pescoço, mas não se conseguia perceber o que pendia dele, por causa da camada de conchas e outras criaturas que lhe cobriam o peito, formando uma espécie de couraça. Um dos olhos estava vazio; o outro olhava para eles com inexpressividade vítrea do interior de uma pálpebra que dava a impressão de que se fecharia se a boneca fosse inclinada. Quase não tinha pestanas e tinha perdido uma parte do cabelo, deixando à mostra na cabeça sequências ordenadas de orifícios; o que lhe restava era escuro e estava todo emaranhado. A boneca era tudo menos querida e amorosa”.
O primeiro instinto da mãe é devolvê-la ao mar, mas perante a insistência chorosa da catraia acaba por ceder e levá-la para casa, prometendo em surdina que irá atirá-la ao caixote do lixo na primeira oportunidade. Porém, quando a oportunidade surge, acaba por trocar o caixote pela publicação de uma fotografia no facebook. Não muito tempo depois, dá por si na casa de banho com as calças do pijama em baixo, vendo a maçaneta rodar do lado de fora antes de ter tempo de trancar a porta, jurando ver a boneca sorrir antes de tudo dar para o torto.
Tudo isto acontece com apenas 22 páginas de leitura, sendo então o leitor transportado para o tempo presente, onde Abby e Lenny, após uma lua de mel pouco doce em Espanha, decidem viajar para a Islândia, mesmo com o cartão de crédito em sobreaquecimento, uma fraca preparação para o tempo agreste e o arrependimento a morder-lhes os calcanhares ainda mal o avião tinha levantado. O que, feitas as contas, terá tudo para correr mal – e corre mesmo.
A trama instala-se quando são descobertos uns ossos no fundo do mar, juntamente com duas sapatilhas de tamanhos diferentes. Para chegar a bom porto, a investigação precisa de unir os esforços de Huldar, um investigador à moda antiga, e Freyja, uma psicóloga que toma conta da sua sobrinha enquanto o irmão faz de guia turístico nas frias montanhas – e que, no seu trabalho com menores, se irá cruzar com Rosa, a miúda que cinco anos atrás estava no barco e que não consegue deixar de pensar “na boneca, naquele horrível olho solitário, sempre fixo, no cabelo emaranhado e nas filas de orifícios vazios formando linhas rectas a cabeça”. Rosa poderá ser a chave para um presumível caso de menores que Huldar e Freyja investigam em conjunto e, quem sabe, para algo mais, mas o silêncio a que se entregou parece ser difícil de quebrar.
Yrsa Sigurdardóttir brinca com várias linhas temporais mas, com muita mestria e imaginação, nunca deixa o leitor perder-se em águas fundas, oferecendo um livro que mistura o thriller policial com um enredo que embala até à última página, onde somos prendados com um momento muito ao estilo de John Carpenter. Provavelmente o melhor livro de Yrsa Sigurdardóttir desde “Lembro-me de ti” – e provavelmente um dos seus melhores.
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